A Assembleia Legislativa decreta, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 30.º e das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Orgânico de Macau, para valer como lei, o seguinte:
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
(Âmbito material de aplicação)
1. A presente lei estabelece as regras a observar nos actos que tenham por objecto a dádiva e a colheita de órgãos ou tecidos de origem humana, para fins terapêuticos, de diagnóstico ou de transplantação, bem como nas próprias intervenções de transplantação.
2. Excluem-se do âmbito desta lei:
a) A colheita e transfusão de sangue;
b) A dádiva de óvulos e de esperma;
c) A colheita, transferência e manipulação de produtos de fecundação e embriões.
3. A presente lei aplica-se, com as necessárias adaptações, às xenotransplantações.
Artigo 2.º
(Estabelecimentos autorizados)
1. Os actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º só podem ser realizados em estabelecimentos hospitalares autorizados para o efeito, sob a responsabilidade e directa vigilância médica e em conformidade com as respectivas leges artis.
2. Somente os médicos autorizados a exercer a respectiva profissão podem assumir a responsabilidade referida no número anterior.
Artigo 3.º
(Confidencialidade)
É proibido revelar a identidade do dador ou do receptor de órgãos ou tecidos, salvo consentimento expresso do próprio ou, tratando-se de pessoa falecida, do cônjuge, dos filhos ou dos pais, por esta ordem.
Artigo 4.º
(Gratuitidade)
1. A dádiva de órgãos e tecidos de origem humana não pode, em circunstância alguma, ser remunerada, sendo proibida a sua comercialização.
2. É proibida em Macau a publicidade à comercialização de órgãos e tecidos de origem humana.
3. É proibido reembolsar o dador, o receptor ou terceiro de quaisquer despesas ou encargos imediatamente resultantes ou que tenham tido como causa directa os actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 8.º
4. Os autores dos actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º e os estabelecimentos hospitalares referidos no n.º 1 do artigo 2.º podem perceber uma remuneração pelo serviço prestado, mas no cálculo desta remuneração não pode ser atribuído qualquer valor aos órgãos ou tecidos que forem objectos de intervenção.
CAPÍTULO II
Colheita em vida
Artigo 5.º
(Admissibilidade)
1. Apenas são permitidas as colheitas em vida de substâncias regeneráveis, se com finalidades de diagnóstico ou terapêuticas de transplantação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2. É admitida a colheita de órgãos ou substâncias não regeneráveis, se com finalidades de diagnóstico ou terapêuticas, bem como a dádiva dos mesmos, desde que haja entre o dador e o receptor relação especial atendível.
3. É proibida a dádiva de substâncias não regeneráveis por parte de menores ou incapazes, salvo autorização judicial.
4. É igualmente proibida a dádiva que, com elevado grau de probabilidade, envolva a diminuição grave e permanente da integridade física e da saúde do dador.
Artigo 6.º
(Informação)
1. O médico deve informar, de modo leal, adequado e inteligível, o dador e o receptor dos riscos possíveis, das consequências da colheita, da dádiva ou do tratamento e dos seus efeitos secundários, bem como dos cuidados a observar após as operações de colheita e transplantação e das eventuais consequências psicológicas.
2. O médico deve procurar certificar-se de que o dador e o receptor entenderam plenamente os efeitos dos actos referidos no número anterior, bem como da não existência de qualquer remuneração envolvida em acordo entre o dador e o receptor.
Artigo 7.º
(Consentimento)
1. O consentimento do dador e do receptor deve ser livre, esclarecido e inequívoco, devendo constar de documento escrito, salvo se as circunstâncias do caso o não permitirem quanto ao receptor.
2. Tratando-se de dador menor, o consentimento é prestado pelos progenitores, ou pelo tutor quando os progenitores se encontrem inibidos do exercício do poder paternal, e dependente sempre da não oposição do menor; havendo desacordo entre os progenitores o consentimento depende ainda de autorização judicial.
3. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a dádiva de órgãos e tecidos de menor com capacidade de entendimento e de manifestação de vontade depende também da concordância expressa deste.
4. Tratando-se de maiores incapazes por razões de anomalia psíquica, a colheita depende de autorização judicial e da não oposição do incapaz.
5. O consentimento é prestado perante médico não pertencente à equipa de transplantação, designado pelo director do estabelecimento onde a colheita se vai realizar.
6. O consentimento do dador ou de quem legalmente o represente é livremente revogável a todo o tempo até à execução do acto, e por qualquer forma inequívoca.
Artigo 8.º
(Direito a assistência médica e indemnização)
1. O dador tem direito a assistência médica até ao seu completo restabelecimento.
2. O dador tem ainda direito a ser indemnizado pelos danos resultantes da colheita, independentemente de culpa sua ou de terceiros.
3. A responsabilidade prevista nos números anteriores recai sobre o estabelecimento hospitalar onde é efectuada a colheita, o qual pode, no entanto, transferi-la para entidade seguradora que o aceite.
CAPÍTULO III
Colheita em cadáveres
(Dadores)
1. É considerado como dador para depois da morte quem, por si ou através dos seus representantes legais, haja manifestado, junto dos Serviços de Saúde de Macau, a sua disponibilidade para a dádiva.
2. É também considerado dador para depois da morte quem, por escrito e inequivocamente, assim o tenha declarado.
3. À disponibilidade para a dádiva é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 7.º
4. A disponibilidade para a dádiva pode ser limitada a certos órgãos ou tecidos e a certos destinatários.
5. A qualidade de dador para depois da morte é comprovada através do cartão individual referido no artigo seguinte, ou por outro meio idóneo e inequívoco.
6. Os familiares do falecido a que se refere o artigo 3.º podem, na falta dos elementos referidos no número anterior, e desde que não tenham conhecimento de oposição daquele, permitir a colheita de órgãos e tecidos.
(Registo de dadores)
1. É criado um registo de dadores para depois da morte.
2. O registo é regulado por diploma do Governador, do qual deve constar:
a) O tipo de registo;
b) Os elementos de identificação do dador e de informação que o registo pode conter;
c) As condições de acesso e de utilização do registo;
d) A entidade responsável pela criação, manutenção e segurança do registo;
e) O modelo do cartão comprovativo da qualidade de dador.
Artigo 11.º
(Comissão de Ética para as Ciências da Vida)
É criada a Comissão de Ética para as Ciências da Vida, cuja composição e competências são definidas por diploma do Governador.
Artigo 12.º
(Certificação da morte)
1. Para efeitos de colheita, a verificação da morte cerebral é efectuada utilizando os critérios e regras de semiologia médico-legal que, de acordo com os progressos científicos, são considerados idóneos para essa certificação.
2. Na verificação da morte não deve intervir médico que integre a equipa de transplantação.
3. Os critérios e regras referidos no n.º 1 são propostos pela Comissão de Ética para as Ciências da Vida e homologados por despacho do Governador.
Artigo 13.º
(Execução da colheita)
1. A colheita é realizada por uma equipa médica designada pelo director do estabelecimento hospitalar onde a mesma se efectuar.
2. Na execução da colheita devem evitar-se mutilações ou dissecações não estritamente indispensáveis à recolha e utilização de tecidos ou órgãos, bem como as que possam prejudicar a realização de autópsia, quando a ela haja lugar.
3. Sempre que o cadáver tenha sido mutilado ou dissecado deve, na medida do possível, proceder-se à sua restauração.
4. O facto de a morte se ter verificado em circunstâncias que, nos termos da lei, imponham a realização de autópsias médico-legais não impede a realização da colheita, devendo, contudo, os médicos relatar toda e qualquer observação que considerem útil para completar o relatório da autópsia.
Artigo 14.º
(Auto de execução da colheita)
1. Os médicos que procedem à colheita devem lavrar um auto, em duplicado, do qual conste:
a) A identidade do falecido;
b) O dia e a hora da verificação da morte;
c) A menção da consulta do registo de dadores para depois da morte e do cartão individual do dador, ou de outros elementos relevantes;
d) A identificação dos médicos intervenientes na operação;
e) A indicação dos órgãos e tecidos recolhidos e o respectivo destino.
2. O auto a que se refere o número anterior deve ser assinado pelos médicos intervenientes e pelo director do estabelecimento hospitalar onde se realizar a colheita, sendo um dos exemplares arquivado neste estabelecimento e o outro remetido aos Serviços de Saúde de Macau.
CAPÍTULO IV
Sanções
Artigo 15.º
(Responsabilidade)
Os infractores das disposições desta lei incorrem em responsabilidade penal nos termos previstos nos artigos seguintes e na legislação penal geral, e em responsabilidade civil e disciplinar nos termos gerais de direito.
Artigo 16.º
(Homicídio para colheita de órgãos ou tecidos)
Ao homicídio cometido com o propósito de colher órgãos ou tecidos do cadáver é aplicável a pena prevista na lei para o homicídio qualificado.
Artigo 17.º
(Comércio e publicidade de órgãos ou tecidos)
1. Quem, no Território, comprar ou vender ou, de qualquer outra forma, pagar ou receber qualquer quantia pela obtenção ou entrega de órgãos ou tecidos do corpo de outrem, é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. Na mesma pena incorre:
a) Quem determinar outrem, desde que haja execução ou começo do facto, por qualquer forma, a exigir ou oferecer o pagamento de órgãos ou tecidos;
b) Quem fundar, financiar, dirigir ou representar associação de indivíduos destinada a promover ou fazer comércio de órgãos e tecidos.
3. Quem, por qualquer meio, fizer publicidade, ou permitir que ela se faça, relativa a actos previstos no n.º 1, ainda que concretizáveis fora do Território, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.
4. A tentativa é punível.
Artigo 18.º
(Remuneração por dádiva)
1. Quem, no Território, cobrar ou pagar qualquer remuneração pela dádiva de órgãos ou tecidos ou efectuar ou aceitar o reembolso de despesas ou encargos da respectiva colheita, em violação do disposto, respectivamente, nos n.os 2 a 4 do artigo 4.º, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. A tentativa é punível.
Artigo 19.º
(Colheitas e transplantações ilícitas)
1. Quem efectuar colheitas de órgãos ou tecidos que infrinjam qualquer das disposições do artigo 5.º é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. Incorre na pena de prisão até 2 anos ou na pena de multa até 240 dias:
a) Quem efectuar colheita ou transplantação de órgãos ou tecidos que decorra sem a vigilância directa de um médico responsável, de acordo com o disposto no artigo 2.º;
b) Quem efectuar colheita ou transplantação em local que não seja um estabelecimento hospitalar autorizado.
3. Incorre na pena prevista no n.º 1 quem efectuar colheita ou transplantação sem o consentimento previsto no artigo 7.º
4. Quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem dos factos previstos nos números anteriores é punível como cúmplice.
5. À coacção cometida com o intuito de obter consentimento para a realização de colheita de órgãos ou tecidos é aplicável a pena prevista para a coacção grave.
6. A tentativa é punível.
Artigo 20.º
(Colheitas em cadáveres)
1. Quem extrair órgão ou tecido de cadáveres humanos fora dos pressupostos desta lei é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
2. A tentativa é punível.
Artigo 21.º
(Penas acessórias)
Em caso de condenação por qualquer dos crimes previstos nos artigos anteriores, o tribunal pode ainda aplicar uma ou mais das seguintes penas:
a) Demissão de cargo ou função pública;
b) Interdição do exercício da profissão por período não inferior a 1 e não superior a 5 anos;
c) Encerramento, por período não superior a 2 anos, do estabelecimento não autorizado nos termos do n.º 1 do artigo 2.º, onde foi efectuada a colheita ou a transplantação.
Artigo 22.º
(Outras infracções)
1. A violação do disposto no artigo 6.º é punida com multa de 10 000 a 100 000 patacas.
2. A violação do disposto no n.º 2 ou no n.º 3 do artigo 13.º, bem como no n.º 1 do artigo 14.º, é punida com multa de 5 000 a 40 000 patacas.
CAPÍTULO V
Disposição final
Artigo 23.º
(Entrada em vigor)
1. As disposições do capítulo III da presente lei entram em vigor com o início de vigência dos diplomas previstos no n.º 2 do artigo 10.º, no artigo 11.º, e no n.º 3 do artigo 12.º
2. Os diplomas previstos no n.º 2 do artigo 10.º e no artigo 11.º são publicados no prazo de 90 dias.
Aprovada em 9 de Maio de 1996.
A Presidente da Assembleia Legislativa, Anabela Sales Ritchie.
Promulgada em 23 de Maio de 1996.
Publique-se.
O Governador, Vasco Rocha Vieira.