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Versão Chinesa

Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 14 de Novembro de 2012

I – Relatório

O presidente do Instituto de Habitação interpõe recurso do Acórdão de 26 de Abril de 2012, no Processo n.º 115/2012, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), doravante designado de acórdão recorrido, com fundamento em haver oposição deste Acórdão com o Acórdão do mesmo Tribunal, de 17 de Maio de 2001, proferido no Processo n.º 26/2001, doravante designado de acórdão-fundamento, nos termos dos artigos 161.º a 168.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC).

Por despacho do relator neste TUI decidiu-se existir a alegada oposição dos dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito e que é a seguinte:

No caso a que se refere o Acórdão recorrido, de 26 de Abril de 2012, no Processo n.º 115/2012, decidiu-se que, quando o recorrente requer patrocínio judiciário para interposição de recurso contencioso, existe lacuna na lei quanto à questão de saber quando é que se considera interposto o recurso, visto que o respectivo prazo de interposição é de caducidade. Nesse acórdão integrou-se a lacuna criando uma norma que dispõe que o recurso contencioso se considera interposto na data em que se pede a nomeação de patrono.

Já no Acórdão-fundamento, de 17 de Maio de 2001, no Processo n.º 26/2001, transitado em julgado, decidiu-se que ao mesmo caso se aplicava o disposto no n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M, de 1 de Agosto, segundo o qual, relativamente ao pedido de apoio judiciário – que abrange, como se sabe, o patrocínio judiciário – “O prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido suspende-se por efeito da apresentação deste e voltará a correr de novo a partir da notificação do despacho que dele conhecer”.

Não houve alteração da regulamentação jurídica, visto que o n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M continua em vigor.

O recorrente presidente do Instituto de Habitação formulou as seguintes conclusões:

(1) Oposição de acórdãos

Por acórdão proferido em 17/5/2001 pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 26/2001: Se o prazo não for processual altura em que foi formulado o apoio judiciário (ou seja, está em curso o prazo substantivo), é de aplicar o disposto no art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M.

O supracitado acórdão transitou em julgado em 7/6/2001.

Contudo, no presente acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância proferiu a jurisprudência que é totalmente contrária, tendo adoptado o fundamento do acórdão n.º 839/2010 do mesmo tribunal e reconhecido que o disposto no art.º 16.º do D.L n.º 41/94/M é dependente duma acção já instaurada e o prazo previsto nesse artigo (art.º 16.º, n.º 2) tem de ser prazo processual em curso (cfr. em particular, o acórdão recorrido, fls. 4, 5 e 8). Quer dizer, se o apoio judiciário for formulado no prazo substantivo, não é aplicável o disposto no art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M.

O acórdão recorrido foi proferido em segundo grau de jurisdição, pelo que, nos termos do art.º 150.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Administrativo Contencioso não é admissível recurso ordinário.

Entre os dois acórdãos supracitados, evidentemente há oposição mútua sobre a solução da mesma questão de direito perfilhada: No acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.º 26/2001, entende-se que o prazo previsto no art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M é aplicável ao prazo substantivo, enquanto no acórdão recorrido o prazo previsto no art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M só é aplicável ao prazo processual.

Igualmente, pelos dois acórdãos foi aplicado o D.L n.º 41/94/M (Regulamentação do Regime de Apoio Judiciário), assim sendo, não há alteração substancial quanto à regulamentação jurídica.

(2) Mérito da causa

De acordo com o acórdão proferido pelo TSI no processo n.º 26/2001, tendo o mesmo tribunal entendido que o prazo de interposição de recurso é prazo substantivo, se o recorrente, antes de interpor recurso contencioso, tiver formulado pedido de apoio judiciário, de acordo com o art.º 16.º, n.º 2 do D.L. n.º 41/94/M, como prazo substantivo, o respectivo prazo não se suspende durante as férias judiciais.

Contudo, no acórdão recorrido entende-se que o prazo substantivo não foi regulado pelo D.L n.º 41/94/M, e pelo que existe uma lacuna jurídica, devendo ser preenchida de acordo com a lei.

Porém, por via do preenchimento de lacuna jurídica, no acórdão recorrido considera-se a data de propositura de acção a data em que se requer o apoio judiciário para nomeação de mandatário judicial. Contudo, o recorrente considera que o art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M é aplicável ao prazo substantivo.

Em conjugação do art.º 15.º, n.º 1 do D.L n.º 41/94/M, podemos verificar que o apoio judiciário previsto no art.º 16.º do D.L n.º 41/94/M pode ser formulado antes da interposição de acção ou na sua pendência.

Quer dizer, o prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido previsto no art.16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M, totalmente pode ser o prazo antes de interposição de recurso.

Na realidade, tal como a jurisprudência do acórdão proferido pelo TSI no processo n.º 26/2001 e o entendimento do Tribunal Administrativo (por exemplo, a sentença proferida no processo n.º 876/11 – ADM, vd. Doc.2), o prazo de interposição de recurso é um prazo substantivo mas não processual, que tem por função regular um determinado período dentro do qual poder exercer-se o direito da acção sob pena de ser extinto o direito substantivo e caducado o direito da acção, visto tratar-se dum direito de aspecto substantivo, caso não se exerça o tal direito no respectivo período.

Pelo que, podemos seguramente tirar a conclusão que não é possível que o prazo previsto no art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M seja aplicável apenas ao prazo processual, mas sim, pelo menos, ao prazo substantivo. Assim sendo, não é acertada a interpretação do acórdão recorrido, nem existe também lacuna jurídica quanto ao prazo substantivo.

Pelo que, ainda que se suponha que o regime de apoio judiciário não regula a respectiva questão, é fácil verificar que à contagem do prazo substantivo do recurso contencioso (independentemente de formulação ou não do apoio judiciário) também é aplicável o art.º 25.º, n.º 3 do Código de Processo Administrativo Contencioso e aplicável extensivamente o art.º 74.º do Código do Procedimento Administrativo. Isto é, o supracitado prazo substantivo é contínuo.

Em conjugação do art.º 320.º do Código Civil, também podemos saber que o prazo substantivo não se suspende ou se interrompe por causa do pedido de apoio judiciário.

De qualquer maneira, mesmo que o acórdão recorrido considere que existe lacuna jurídica, não se devendo aplicar ou criar a norma jurídica ou solução idêntica a de Portugal.

Evidentemente, a inexistência de tal regulamentação no actual regime de apoio judiciário de Macau de “ser considera a data de propositura de acção a data em que se requer o apoio judiciário para nomeação de mandatário judicial”, não foi devido à negligência do legislador (nos termos do art.º 8.º, n.º 3 do Código Civil, deve-se presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados), mas sim, pelo contrário, o legislador não tomou em consideração a aplicação do respectivo teor a Macau.

Pelo acima exposto, entende-se que o acórdão recorrido violou o art.º 16.º, n.º 2 do D.L n.º 41/94/M, o art.º 74.º do CPA e art.º 8.º e 320.º do CC.

O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de se fixar a jurisprudência no sentido da aplicabilidade do disposto no n.º 2 do artigo 16.º do Dec.-Lei 41/94/M ao prazo de interposição de recurso contencioso, sendo que, consequentemente, no caso sub judice mostrando-se caducado o direito de recurso contencioso (atenta a data de notificação da advogada nomeada e as regras da contagem contínua do prazo, sem suspensão, designadamente nas férias judiciais), haverá que conceder provimento ao recurso sob escrutínio.

II – Os factos

Os factos pertinentes são os seguintes:

a) No dia 5 de Outubro de 2009, Chan Chong Seng apresentou, junto da entidade recorrida, requerimento de candidatura para atribuição de habitação.

b) No dia 21 de Julho de 2010, Chan Chong Seng apresentou reclamação ao Instituto de Habitação, face ao indeferimento do seu requerimento.

c) No dia 6 de Agosto de 2010, a entidade recorrida, através do ofício n.º 1008040049/DAH, notificou Chan Chong Seng da supracitada decisão que indeferiu a sua reclamação, bem como indicou na notificação que o recorrente pode interpor recurso contencioso para o Tribunal Administrativo, ao abrigo do art.º 25.º do Código do Processo Administrativo Contencioso.

d) No dia 9 de Agosto de 2010, Chan Chong Seng recebeu o supracitado ofício.

e) No dia 20 de Agosto de 2010, Chan Chong Seng pediu patrocínio judiciário para interposição do recurso contencioso junto do Tribunal Administrativo.

f) No dia 16 de Abril de 2011, foi o advogado nomeado notificado da sua nomeação para interpor recurso contencioso.

g) No dia 25 de Maio de 2011, o advogado nomeado a Chan Chong Seng, junto do Tribunal Administrativo, o recurso contencioso.

III – O Direito

1. A questão a resolver

A questão fundamental a resolver é a de saber quando se considera interposto recurso contencioso de anulação quando o interessado pede patrocínio judiciário para interpor o recurso.

2. Pressupostos do recurso com fundamento em oposição de acórdãos

Como se disse, por despacho do relator, decidiu-se existir a alegada oposição dos dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito.

Tal decisão não vincula a conferência (n.º 3 do artigo 166.º do CPAC), pelo que se reapreciará a questão, pois a decisão do mérito da causa depende da existência da oposição de acórdãos.

De acordo com o artigo 161.º do CPAC são pressupostos deste recurso a oposição entre dois acórdãos do TSI, sendo o recorrido em segundo grau de jurisdição (ou excepcionalmente em 1.º grau de jurisdição nas circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo artigo), relativamente à mesma questão fundamental de direito e na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica, desde que não haja jurisprudência obrigatória fixada.

Vejamos se se verificam os pressupostos nos dois invocados acórdãos.

3. As decisões dos Acórdãos recorrido e fundamento

No caso a que se refere o Acórdão recorrido, de 26 de Abril de 2012, no Processo n.º 115/2012, decidiu-se que, quando o recorrente requer patrocínio judiciário para interposição de recurso contencioso de anulação, existe lacuna na lei quanto à questão de saber quando é que se considera interposto o recurso, visto que o respectivo prazo de interposição é de caducidade. Nesse acórdão integrou-se a lacuna criando uma norma que dispõe que o recurso contencioso se considera interposto na data em que se pede a nomeação de patrono.

Já no Acórdão-fundamento, de 17 de Maio de 2001, no Processo n.º 26/2001, transitado em julgado, decidiu-se que ao mesmo caso se aplicava o disposto no n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M, de 1 de Agosto, segundo o qual, relativamente ao pedido de apoio judiciário – que abrange, como se sabe, o patrocínio judiciário – “O prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido suspende-se por efeito da apresentação deste e voltará a correr de novo a partir da notificação do despacho que dele conhecer”.

Há oposição frontal expressa entre os dois acórdãos sobre a mesma questão de direito.

Na verdade, enquanto que no acórdão recorrido se entendeu que o recurso contencioso se considera interposto logo que se faz o pedido de nomeação de patrono, no acórdão-fundamento se entendeu que tal pedido apenas suspendia o prazo de interposição do recurso contencioso, que voltava a correr quando o recorrente fosse notificado do despacho sobre o pedido de nomeação de patrono.

A regulamentação jurídica não teve alterações, pois o n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M continua vigente.

Sobre a matéria não há jurisprudência obrigatória fixada.

O Acórdão-fundamento transitou em julgado.

É, pois, manifesto que se verificam os pressupostos para se poder conhecer do mérito da causa.

4. Lacuna da lei

Os prazos de caducidade são aqueles em que está em causa um direito que deve ser exercido dentro de certo prazo, como se expressa o artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil. Os prazos de propositura de acção são, pois, em princípio, prazos sujeitos a caducidade1. Os prazos de interposição de recurso contencioso de actos anuláveis, previstos no n.º 2 do artigo 25.º do CPAC são, indiscutivelmente, por isso, prazos de caducidade2.

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1 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, volume I, 4.ª edição, 1987, p. 272.
2 JC. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1999, p. 221 e FERNANDO BRANDÃO FERREIRA PINTO e GUILHERME DA FONSECA, Direito Processual Administrativo Contencioso, Porto, Elcla Editora, 1991, p. 83.

Os prazos para interposição de recurso contencioso são prazos relativamente curtos, de 30 dias ou 60 dias a contar da respectiva publicação ou notificação, consoante o interessado resida ou não em Macau. Tem, assim, a maior relevância a questão de saber como se conta tal prazo quando o recorrente, com fundamento em insuficiência de meios económicos, pede patrocínio judiciário, isto, é pede que lhe seja nomeado um advogado para interpor o recurso contencioso.

O patrocínio judiciário oficioso, como uma das modalidades de apoio judiciário, está previsto no Decreto-Lei n.º 41/94/M.

O n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M, a propósito do pedido de apoio judiciário, dispõe que “O prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido suspende-se por efeito da apresentação deste e voltará a correr de novo a partir da notificação do despacho que dele conhecer”.

Tal como no acórdão recorrido, afigura-se-nos que os prazos a que se refere o n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M, são os prazos processuais que estão em curso na acção, não os prazos para a propositura da acção. Quando, a propósito de uma acção pendente e da regulamentação de um incidente processual, a lei se refere a prazos em curso, está seguramente a referir-se aos prazos processuais que estão a correr. Se quisesse mencionar os prazos de caducidade da acção ou de prescrição do direito certamente disporia de outra forma.

Mas a ser assim, como é, sufragamos, igualmente a tese do acórdão recorrido, de que a lei é omissa quanto à questão em apreço, isto é, a questão de saber quando o recorrente pede patrocínio judiciário para interposição de recurso contencioso, quando é que se considera interposto o recurso.

Lacuna e silêncio da lei não são sinónimos. Pode haver silêncio da lei e não haver lacuna. A existência de lacuna pressupõe, em primeiro lugar, que a solução que se procura reveste os caracteres próprios do jurídico e não respeita a outras ordens normativas, como a religiosa, a moral ou a de cortesia. Concluindo-se que o caso cabe dentro da ordem jurídica, ainda é necessário determinar se ele deve ser juridicamente regulado3.

É o que ensina KARL LARENZ4: “Poderia pensar-se que existe uma <lacuna da lei> só quando e sempre que a lei [...] não contenha regra alguma para determinada configuração do caso, quando, portanto, <se mantém em silêncio>. Mas existe também um <silêncio eloquente> da lei [...]. <Lacuna> e <silêncio da lei> não são, portanto, pura e simplesmente o mesmo.

O termo <lacuna> faz referência a um carácter incompleto. Só se pode falar de <lacunas> de uma lei quando esta aspira a uma regulação completa em certa medida para um determinado sector.

[...]

Na maioria dos casos em que se fala de uma lacuna da lei não está incompleta uma norma jurídica particular, mas uma determinada regulação em conjunto: esta não contém nenhuma regra para certa questão que, segundo a intenção reguladora subjacente, precisa de uma regulação. A estas lacunas [...] qualificamo-las de <lacunas de regulação>. Não se trata de aqui a lei, se se quiser aplicar sem uma complementação, não possibilite uma resposta em absoluto; a resposta teria que ser que justamente a questão não está regulada e que, por isso, a situação de facto correspondente fica sem consequência jurídica. Mas uma tal resposta, dada pelo juiz, haveria de significar uma denegação de justiça, se se tratar de uma questão que caia no âmbito da regulação jurídica intentada pela lei e não seja de atribuir, por exemplo, ao espaço livre do direito.

[...]

Tanto as lacunas normativas como as lacunas de regulação são lacunas dentro da conexão regulativa da própria lei. Se existe ou não lacuna há-de aferir-se do ponto de vista da própria lei, da intenção reguladora que lhe serve de base, dos fins com ela prosseguidos e do <plano> legislativo. Uma lacuna da lei é uma <imperfeição contrária ao plano da lei>”.

Também BAPTISTA MACHADO5 se pronuncia no mesmo sentido, dizendo que “A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha. Mas uma incompletude relativamente a quê? Uma incompletude relativamente a algo que protende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma <incompletude contrária a um plano> (<planwidrige Unvollständigkeit>).

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3 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Coimbra, Almedina, 2009, reimpressão da 13.ª edição de 2005, p. 435.
4 KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, tradução da 5.ª edição, 1989, p. 448 e seguintes.
5 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 8.ª reimpressão, 1995, p. 194.

Tratando-se de uma lacuna jurídica, dir-se-á, pois, que ela consiste numa incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global. Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global – ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica”.

5. Lacuna no caso concreto

O Decreto-Lei n.º 41/94/M contém uma regulamentação relativamente minuciosa sobre o apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de preparos e custas e patrocínio judiciário.

Várias normas prevêem as situações de dedução de requerimento para a nomeação de patrono e respectiva consequência quanto aos prazos em curso. No artigo 13.º estatui-se sobre o pedido de nomeação de patrono – formulado na pendência da acção – a fim de este elaborar o pedido de apoio judiciário, dispondo-se que tal requerimento suspende a instância, voltando a correr, por inteiro, a partir da notificação da decisão. No artigo 16.º prevê-se, como se disse a suspensão dos prazos judiciais em curso por efeito da apresentação do pedido de apoio judiciário, voltando a correr o prazo a partir da notificação da decisão. No artigo 27.º trata-se do pedido de escusa do patrono nomeado, estatuindo-se que o requerimento de escusa suspende o andamento da acção, voltando a correr, por inteiro, o prazo que estiver em curso, a partir da notificação da decisão.

Em todos os casos previstos a acção já está pendente. Falta, manifestamente, a previsão das vicissitudes relacionadas com a nomeação de patrono ou sua escusa, quando esta nomeação visa a propositura de acção sujeita a prazo de caducidade ou a interposição de recurso contencioso.

Há, pois, incompletude do sistema, pelo que há lacuna da lei.

6. Integração das lacunas da lei.

A integração das lacunas da lei está prevista no artigo 9.º do Código Civil, onde se dispõe:

“Artigo 9.º

(Integração das lacunas da lei)

1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.

2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.

3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”.

“O primeiro recurso estabelecido na lei para disciplinar o caso omisso é o da norma aplicável aos casos análogos [...] A analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações”6.

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6 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume I, 4.ª edição, 1987, p. 59.

Explica BAPTISTA MACHADO7 que “dois casos dizem-se análogos quando neles se verifique um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante - de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro”.

J. OLIVEIRA ASCENSÃO8 entende que “A analogia repousa na exigência, a que o pensamento actual é extremamente sensível, do tratamento igual de casos semelhantes. A analogia em si é um processo geral do pensamento, que em matéria de integração de lacunas tem uma das suas aplicações jurídicas.

Se uma regra estatui de certa maneira para um caso, é natural que um caso análogo seja resolvido da mesma forma, apesar de lacunoso.

[...]

Determinar porém onde há verdadeiramente e onde não há analogia é tarefa difícil que exige toda a finura por parte do intérprete. Não basta uma semelhança da descrição exterior da situação: é necessário que haja semelhança sob o ponto de vista daquele efeito jurídico. Por isso nos diz o art. 10.º do Código Civil9 que há analogia quando no caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Daí a distinção entre analogia lógica e analogia jurídica: esta, ultrapassando a mera verificação, tem carácter axiológico ou valorativo.

É um tanto exagerado exigir que procedem no caso omisso as razões justificativas do caso regulado, pois se procedessem todas as razões justificativas da regulamentação do caso previsto não teríamos um caso análogo, teríamos um caso idêntico10. O caso omisso tem necessariamente diversidade em relação ao caso previsto. É relativamente semelhante, mas é também relativamente diverso. O que a analogia supõe é que as semelhanças são mais relevantes que as diferenças. Há um núcleo fundamental nos dois casos que exige a mesma estatuição. Se esse núcleo fundamental pesar mais que as diversidades, podemos então afirmar que há analogia.

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7 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito…, p. 202.
8 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito…, p. 446 e 447.
9 Do Código Civil de 1996, que corresponde ao já referido artigo 9.º do Código Civil de Macau.
10 Neste sentido, KARL LARENZ, Metodologia…, p. 461.

Daqui resulta que é sempre e só através de uma valoração, dirigida à descoberta da essência daquela situação, que podemos chegar à afirmação de que há analogia. Todos os processos meramente descritivos são insuficientes”.

7. O recurso à analogia

Haverá casos análogos previstos na lei ao que nos cumpre resolver?

Já vimos que a lei prevê casos de pedidos de nomeação de patrono (artigos 13.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M) ou pedido de escusa de patrocínio (artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M) quando a acção está pendente.

Mas entre estes casos e o pedido de patrocínio para interpor recurso contencioso de anulação a analogia não é substancial. Na verdade, a actividade do advogado nomeado para interpor um recurso contencioso é substancialmente diversa daquela que cabe a um nomeado já no decurso de uma acção, quando está a correr um prazo processual para a prática de um acto (processual). Este exerce, fundamentalmente, a prática de actos com uma componente jurídica acentuada. Já o advogado nomeado para intentar uma acção ou interpor recurso contencioso procede a actividade diversa. Recordando M. TEIXEIRA DE SOUSA11, “A entrega da petição inicial é o resultado de uma actividade prévia do advogado do autor e, frequentemente, de várias opções quanto à estratégia a adoptar. Aquela actividade inclui a indagação dos factos relevantes para a fundamentação da posição do seu mandante e a averiguação dos meios de prova susceptíveis de ser utilizados por esta parte. Uma e outra resultam do diálogo entre a parte e o seu mandatário; cabe a este último conduzir esse diálogo, porque é ele que sabe o que deve procurar e seleccionar. Com base nos resultados obtidos, o advogado verifica se estão preenchidas as condições para o sucesso da acção, não devendo esquecer o respeito do dever de verdade que incumbe à parte [cfr. artigo 456.º, n.º 2, alªs a) e b)]12 e a observância dos deveres profissionais de não advogar contra lei expressa e de recusar o patrocínio de questões injustas [cfr. artigo 78.º, alªs b) e c), EOA]13. Para esse prognóstico também é relevante o eventual conhecimento que o mandatário tenha das posições da contraparte, nomeadamente através da troca de correspondência com o advogado desta.

Se o mandatário concluir pela probabilidade do êxito da acção, cabe-lhe ainda verificar se, atendendo aos custos da acção e aos eventuais benefícios, o seu mandante obterá um proveito efectivo com a procedência dela, se convém insistir numa eventual composição negocial do litígio ou se é conveniente procurar para ele uma solução através de outros meios (como a arbitragem ou a mediação, por exemplo). Se o mandatário se decidir pela propositura da acção, cabe-lhe verificar se, antes dela, é conveniente requerer o decretamento de uma providência cautelar (cfr. artigos 381.º a 427.º)14 ou é necessário solicitar a produção antecipada da prova (cfr. artigos 520.º e 521.º).15

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11 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 2.ª edição, 1997, p. 268 e 269.
12 Corresponde ao artigo 385.º, n.º 2, alíneas a) e b) do Código de Macau.
13 Os deveres do advogado de não advogar contra lei expressa e de recusa do patrocínio de questões injustas constam, respectivamente, dos artigos 12.º, n.º 2 e 2.º do Código Deontológico dos advogados, homologado pelo Despacho n.º 121/GM/92, publicado no BO, I Série, 5.º suplemento, de 31.12.92.
14 Corresponde aos artigos 326.º a 368.º do Código de Macau.
15 Corresponde aos artigos 444.º e 445.º do Código de Macau.

Afigura-se-nos que não existe analogia entre as situações dos artigos 13.º, 16.º e 27.º do Decreto-Lei n.º 41/94/M e a dos autos já que o caso dos autos, o caso omisso, é substancialmente diverso dos regulados na lei.

Impõe-se, assim, passar à segunda fase do processo de integração de lacunas.

8. O recurso à criação de norma se houvesse que legislar dentro do espírito do sistema.

“A integração das lacunas, na falta de caso análogo, é feita criando o próprio intérprete a norma que, como legislador, dentro do espírito do sistema, ele formularia para o tipo de casos em que a hipótese omissa-se integra. Em lugar do recurso ao direito natural ou aos princípios informadores do sistema legislativo, cabe ao intérprete criar o direito subsidiário”16.

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16 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, p.59.

A chave para criar uma norma dentro do espírito do sistema reside em colocar o recorrente, que pede o patrocínio judiciário, na mesma situação daquele que não necessita deste patrocínio e que contrata desde logo um advogado. Parece ter sido isto que o acórdão recorrido pretendeu efectuar quando afirmou “Assim se salvaguardam as razões de justiça, de alguém que é pobre, não tem advogado, pretende exercer o seu direito e vai pedir o patrocínio. Fica exactamente na situação daquele que pode contratar desde logo um advogado”.

Na verdade, parece-nos que esta é a via certa para encontrar a solução: colocar o requerente de patrocínio judiciário exactamente na mesma situação do que quer interpor recurso contencioso e se dirige a um advogado, pedindo os seus serviços e pagando-os.

É que a necessidade de recurso ao patrocínio judiciário – por carência de meios económicos – não deve colocar o patrocinado em situação inferior à daquele que, por si, constitui advogado. Mas, também, aquela necessidade não pode colocar o patrocinado em situação mais vantajosa do que aquele que não dispõe de patrocínio oficioso.

A norma que o acórdão recorrido criou foi uma regra segundo a qual o recurso contencioso se considera interposto na data em que o interessado em interpor o recurso pede o patrocínio judiciário.

Foi aqui que, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido claudicou.

É que o interessado em interpor recurso contencioso não vê o respectivo prazo de caducidade interrompido quando se dirige a um advogado, o contrata e lhe pede que interponha o recurso. O prazo de caducidade só se interrompe quando o advogado dá entrada à petição de recurso no Tribunal.

Um residente em Macau dispõe do prazo de 30 dias para interpor o recurso contencioso. Se ele se dirige a um advogado no 25.º dia após a notificação do acto administrativo o recurso contencioso não se considera interposto nesta data e o seu advogado disporá apenas de 5 dias para minutar a petição inicial.

Assim sendo, a norma criada pelo acórdão recorrido é manifestamente mais vantajosa para o que pede o patrocínio judiciário do que para aquele que a ele não recorre.

Não parece que tal norma se integre no espírito do sistema.

Pois bem, para ficarem as duas situações em igualdade de circunstâncias, parece-nos óbvio que o prazo para interpor recurso contencioso quando o interessado pede o patrocínio se deve suspender nesta data e voltar a correr quando o advogado lhe é nomeado. Este disporá apenas do prazo restante, mas é isso, exactamente, que sucede ao advogado constituído. Este só dispõe do prazo restante até perfazer o previsto na lei. O prazo anterior corrido entre a notificação do seu constituinte e o dia em que é mandatado, já não o pode aproveitar.

Mas dir-se-á, se o advogado nomeado não cumprir a nomeação e não interpuser o recurso contencioso quem fica prejudicado é o interessado. Isso é exacto, mas também é isso que sucede com o advogado constituído. Em ambos os casos os advogados sujeitam-se a ser accionados civilmente para efectivação da responsabilidade civil (extracontratual ou contratual, conforme os casos) e em serem punidos disciplinarmente pela falta cometida, se a houver. O que parece é que talvez os prazos actuais para interposição de recurso contencioso sejam demasiado reduzidos. A questão está aqui e não nas normas atinentes ao prazo para pedir a nomeação de patrono.

O recurso é, assim, procedente, embora por fundamentos parcialmente diversos dos invocados pelo recorrente.

IV – Decisão

Face ao expendido, julgam o recurso parcialmente procedente e:

A) Uniformizam a jurisprudência, nos termos da alínea 1) do n.º 2 do artigo 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e do n.º 4 do artigo 167.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, fixando o seguinte entendimento:

O prazo para interposição de recurso contencioso de actos anuláveis suspende-se no momento em que o interessado formula pedido de nomeação de patrono e volta a correr a partir da notificação do despacho que dele conhecer, sem inutilização do prazo corrido desde a notificação ou publicação do acto administrativo.

B) Concedem provimento ao recurso quanto ao objecto da causa, revogando o acórdão recorrido, para ficar a subsistir o despacho de 1.ª instância que rejeitou o recurso contencioso por intempestividade.

Custas pelo recorrido.

Após trânsito em julgado, publique o Acórdão no Boletim Oficial.

Macau, 14 de Novembro de 2012.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai – Lai Kin Hong (com Declaração de voto que se junta) – Choi Mou Pan

O Magistrado do Ministério Público

presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho

Processo 57/2012

Declaração de voto de vencido

Entendo que in casu não existe lacuna da lei, uma vez que o art.º 16.º/2 do D. L. 41/94/M de 15AGO refere-se ao prazo que estiver em curso, não se limitando a referir-se expressamente a um prazo de natureza processual de uma acção ou recurso pendente. Assim, se a lei não distinguir, o intérprete-aplicador não deve distinguir. Portanto, o estatuído nessa norma aplica-se ao prazo para a interposição de recurso contencioso de anulação de acto administrativo que, sendo um meio impugnatório por via judicial de uma decisão, embora administrativa, já tomada em relação a uma determinada questão jurídica, como se fosse uma decisão tomada na pendência de uma “instância”, deve merecer um tratamento algo diverso do que sucede no regime da caducidade do direito de acção em geral, que se aplica a situações em que inexiste ainda qualquer pronúncia por parte da entidade que exerce o poder público sobre determinada questão jurídica.

Quanto à estatuição do art.º 16.º/2 do D. L. 41/94/M de 15AGO, a expressão “..... voltará a correr de novo ......” deve ser interpretado no sentido de interrupção do prazo, isto é, voltará a correr por inteiro, tal como assim prescrito no n.º 3 do art.º 13.º do mesmo diploma, cuja epígrafe também emprega impropriamente o termo “suspensão” quando o legislador quer realmente dizer “interrupção”.

Eis as razões que me levaram a votar vencido o Acórdão antecedente.

RAEM, 14NOV2012

O juiz adjunto, Lai Kin Hong.