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Versão Chinesa

Tribunal de Última Instância

Processo n.º 40/2023

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório

O Ministério Público interpôs o presente recurso com fundamento em oposição de acórdãos da decisão proferida em 19 de Janeiro de 2023 no Processo n.º 639/2022 do Tribunal de Segunda Instância, considerando que a mesma se encontra em oposição com o acórdão já transitado em julgado proferido pelo mesmo Tribunal no Processo n.º 426/2022.

Constata-se nos presentes autos que, inconformado com o acto administrativo praticado pelo Presidente do Instituto de Habitação que determinou a resolução do contrato-promessa de compra e venda de habitação económica correspondente à fracção sita no 24.º andar I do bloco 1 do Edifício Cheng Chong, na Estrada do Canal dos Patos, que se havia candidatado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 13/93/M e do Decreto-Lei n.º 26/95/M, Chang Hong, melhor identificado nos autos, recorreu para o Tribunal Administrativo, que julgou improcedente o recurso.

Ainda inconformado, Chang Hong apresentou recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância, que por sua vez decidiu conceder provimento ao recurso, anulando a sentença do Tribunal Administrativo bem como a decisão do Presidente do Instituto de Habitação.

Desse acórdão veio o Ministério Público apresentar o presente recurso para o Tribunal de Última Instância, com fundamento em oposição de acórdãos, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

a) O acórdão recorrido está, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 161.º do CPAC, em oposição com o acórdão-fundamento, porquanto, perante factos essenciais idênticos tais acórdãos decidiram contraditoriamente a mesma questão de direito.

b) A questão controvertida versa sobre as mesmas normas jurídicas, pelo que se pode afirmar que a oposição ocorreu no domínio da mesma legislação, é dizer, na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 161.º do CPAC.

c) De acordo com a disposição transitória contida no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, a alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na redacção resultante daquela Lei, é também aplicável ao candidato, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores que, antes da entrada em vigor daquela Lei n.º 13/2020, já se tenham candidatado à compra de habitação económica.

d) Resulta da matéria de facto provada que, no período temporal que, à luz da disposição transitória antes referida, é relevante, ou seja, o período situado entre a data de apresentação da candidatura (1.6.2005) e a data da escolha da fracção (4.10.2012), um elemento do agregado familiar do Recorrente contencioso outorgou, como promitente-comprador, num contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma fora do regime da habitação económica.

e) A Administração, mercê da verificação desse facto que preenche o requisito negativo a que se refere a alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 e mostrando-se, por outro lado, concretizada a hipótese da norma contida no n.º 4 do artigo 34.º do mesmo diploma legal, ambas aplicáveis à situação de facto, estava vinculada a de decretar a resolução do contrato-promessa, tal como bem decidiu o Juiz do Tribunal Administrativo.

f) Quando, como no caso, a lei nova só reclama vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afectar direitos, situações ou posições que, embora constituídos no passado ou ao abrigo de lei anterior, se prolongam no presente, se não pode falar de verdadeira retroactividade, mas de retrospectividade.

g) Em todo o caso, não existe no nosso ordenamento uma proibição geral no que tange à existência de leis retroactivas e a norma do artigo 11.º do Código Civil, prevê, explicitamente, na sua segunda parte, a possibilidade de existência dessas leis.

h) A douta decisão recorrida afastou erradamente a aplicação da norma da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2020 imposta pela norma transitória contida no n.º 4 do artigo 3.º deste último diploma legal à situação sub judice com base numa interpretação também ela errada da norma do artigo 11.º do Código Civil e, deste modo, violou as citadas normas legais.

i) A norma da alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º da Lei n.º 10/2011 não constitui arrimo legal bastante para neutralizar a aplicação da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da mesma Lei na situação vertente.

j) Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do Código Civil, que os tribunais estão sujeitos à lei e só a ela e por isso não podia o Tribunal a quo recusar a aplicação da lei por apelo a uma vaga, ainda que respeitável, consideração sobre o que é ou não é justo.

l) O douto acórdão recorrido ao concluir no sentido de que a Administração estava impedida de, no caso, praticar o acto administrativo sindicado nestes autos com invocação da norma da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 na redacção da Lei n.º 13/2020 e, ao decidir, com esse fundamento, revogar a decisão do Juiz do Tribunal Administrativo e, em substituição, anular aquele acto administrativo, incorreu em violação das normas legais contidas no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, do artigo 11.º, n.º 1 e do artigo 7.º, n.º 1 do Código Civil e da alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º da Lei n.º 10/2011.

Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve ser julgada existente a invocada oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento e, após, ser dado provimento ao recurso e, em consequência:

(i) ser uniformizada jurisprudência no sentido de que, por força da disposição transitória contida no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, a norma da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 na redacção introduzida por aquela Lei é aplicável ao candidato, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores ainda que a candidatura à compra de habitação económica e que o contrato-promessa de compra e venda celebrado na sequência dessa candidatura tenham ocorrido antes da entrada em vigor daquela Lei n.º 13/2020 e;

(ii) em conformidade com essa jurisprudência ser revogada a douta decisão recorrida.

Devidamente notificados, vieram o Presidente do Instituto de Habitação e Chang Hong apresentar as suas alegações.

Na óptica do Presidente do Instituto de Habitação, deve ser revogado o acórdão recorrido, em consequência da uniformização da jurisprudência no mesmo sentido indicado pelo Ministério Público.

Por seu turno, defende o recorrido Chang Hong a rejeição do recurso interposto pelo Ministério Público, por considerar não verificados os pressupostos previstos no artigo 161.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, e caso assim não se entender, que deve ser mantida a posição exposta no acórdão ora recorrido.

Remetidos os autos a esta instância, e em sede de vista, manteve o Exmo. Magistrado do Ministério Público a sua posição já exposta nas alegações do recurso.

Por despacho da Juíza relatora do processo neste Tribunal de Última Instância, foi admitido o recurso interposto, por entender verificada a oposição dos acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica sobre a matéria.

Tendo sido constituído o Colectivo, com a formação referida no n.º 2 do artigo 46.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, e corridos os vistos dos Mmos. Juízes-Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação

2.1. A questão suscitada no presente recurso reside em saber se, por força da disposição transitória contida no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, a norma da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na redacção introduzida por aquela Lei, é aplicável aos candidatos à aquisição de habitação económica, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores, mesmo que a respectiva candidatura e a consequente celebração do contrato-promessa de compra e venda tenham ocorrido antes da entrada em vigor daquela Lei n.º 13/2020.

No acórdão ora recorrido, proferido no Processo n.º 639/2022, o Tribunal de Segunda Instância entende que, antes de entrar em vigor da Lei n.º 13/2020, todos os factos pressuponentes de que depende a aquisição pelo candidato do direito à habitação económica já consumaram e consolidaram, tendo lhe sido passado o termo de autorização e entregue o imóvel e pago a totalidade do preço, pelo que o regime alterado pela Lei n.º 13/2020, incluindo o seu regime transitório, não se aplica à situação concreta reportada nos autos, porque em termos de factos-pressuponentes do candidato para obter a respectiva habitação económica, ele nada tem a ver com o regime da nova Lei n.º 13/2020 por força do princípio da aplicação da lei no tempo nos termos fixados pelo art.º 11.º do Código Civil. Daí que é afastada a aplicação do n.º 8 do art.º 14.º da Lei n.º 10/2011, na versão dada pela Lei n.º 13/2020, tomando-se ainda em consideração os princípios de justiça e do respeito pelos direitos adquiridos e das legítimas expectativas dos interessados.

Por sua vez, no acórdão-fundamento, proferido no Processo n.º 426/2022, afirma o Tribunal de Segunda Instância que, à data da celebração do contrato-promessa em 03/01/2013, o agregado familiar candidato à habitação económica caiu superveniente no âmbito do requisito negativo consignado sucessivamente nos n.º 3, alínea 1), n.º 4, alínea 1) e n.º 8, alínea 1) do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, com a redacção dada pela Lei n.º 13/2020. Por outras palavras, é aplicável ao caso concreto o disposto no n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na versão dada pela Lei n.º 13/2020.

Nota-se que, em ambos os casos, as candidaturas à aquisição de habitação económica foram apresentadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 10/2011 e os contratos-promessa de compra e venda de habitação económica foram celebrados em Janeiro de 2013, antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2020.

Verifica-se assim oposição entre os dois acórdãos sobre a mesma questão de direito, sendo certo que a regulamentação jurídica sobre a matéria não teve alteração substancial e não há jurisprudência obrigatória fixada sobre a questão em causa.

Estão preenchidos, portanto, os pressupostos para que se possa conhecer do mérito da causa.

2.2. Nos autos em que foram proferidos o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, discutiu-se a validade do acto administrativo impugnado de resolução do contrato-promessa de compra e venda de habitação económica praticado ao abrigo do disposto no artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, no artigo 14.º n.º 8, alínea 1) e no artigo 34.º n.º 4 da Lei n.º 10/2011, na redacção dada pela Lei n.º 13/2020.

Assim se coloca a questão de interpretação e aplicação da Lei n.º 10/2011 (Lei da habitação económica), nomeadamente do seu artigo 14.º, em face das suas alterações legislativas sucessivas.

2.2.1. No termos do n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011, na sua versão original, o Instituto de Habitação “procede à resolução do contrato-promessa caso verifique, durante o período entre a celebração do contrato-promessa de compra e venda e a emissão do termo de autorização, que o promitente-comprador e os elementos do seu agregado familiar não cumprem os requisitos previstos no n.º 3 do artigo 14.º, salvo o incumprimento daqueles a favor de quem seja transmitida a posição contratual por morte do promitente-comprador ou dos elementos do seu agregado familiar”.

Daí que a relevância da interpretação e aplicação do n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 (Lei da habitação económica), na sua versão inicial.

Na tese do acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância entende que não é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 14.º.

Desde logo, é de reparar que com a referida Lei n.º 10/2011 foi revogado o Decreto-Lei n.º 13/93/M.

Ao abrigo das alíneas 1) e 2) do n.º 1 do artigo 60.º (Aplicação no tempo) dessa nova lei, a Lei n.º 10/2011 é aplicável tanto à habitação económica “construída, total ou parcialmente, após a sua entrada em vigor”, como à habitação económica “construída, total ou parcialmente, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 13/93/M, de 12 de Abril, antes da sua entrada em vigor, desde que não tenha sido celebrado o respectivo contrato-promessa de compra e venda.

A posição é reforçada com a leitura do Parecer n.º 3/IV/2011 emitido pela 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa que acompanhou a Proposta de Lei:

A nova lei aplica-se à habitação económica construída ou em construção após a sua entrada em vigor. Aplica-se ainda à habitação económica construída ou em construção ao abrigo do Decreto-Lei n.º 13/93/M, de 12 de Abril, antes da sua entrada em vigor, desde que não tenha sido celebrado o respectivo contrato-promessa de compra e venda (artigo 60.º, n.º 1).1

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1 Parecer n.º 3/IV/2011 da 3.ª Comissão Permanente, pág. 48, disponível em https://www.al.gov.mo/uploads/attachment/2017-10/2600359edaac94447a.pdf.

Assim, visto que a Lei n.º 10/2011 entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2011 (conforme o seu artigo 64.º), a mesma regulava a posição jurídica reportada tanto no acórdão recorrido como no acórdão-fundamento, uma vez que os contratos-promessa de compra e venda de habitação económica foram celebrados em Janeiro de 2013.

E dispõe o artigo 60.º, n.º 5, alínea 1), da Lei n.º 10/2011 o seguinte:

5. Sem prejuízo do disposto na alínea 5) do artigo 63.º, as candidaturas admitidas na lista geral ao abrigo do disposto no Regulamento de acesso à compra de habitações construídas no regime de contrato de desenvolvimento para a habitação continuam válidas, tendo os respectivos candidatos direito à atribuição prioritária das habitações disponíveis e sendo-lhes aplicáveis:

1) Os requisitos de acesso à compra de habitação económica, previstos na presente lei, com excepção do n.º 2 e, até à data da apresentação da candidatura, do n.º 3 do artigo 14.º;”.

Por sua vez, o artigo 14.º determina os requisitos gerais de acesso à compra das fracções, cujo n.º 3 prevê que:

Sem prejuízo do disposto no número anterior, os candidatos não podem ser ou ter sido, nos cinco anos anteriores à data da apresentação da candidatura e até à data de celebração da escritura pública de compra e venda da fracção:

1) Promitentes-compradores ou proprietários de prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional ou terreno na RAEM;

2) Concessionários de terreno no domínio privado da RAEM.” (na sua versão original)

No acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância entende que a aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 14.º foi afastada pela norma contida na alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º da mesma Lei n.º 10/2011, entendimento este que não se afigura correcto, salvo o muito respeito.

Na verdade, e tal como resulta claramente da lei, a alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º não afasta por completo a aplicação do n.º 3 do artigo 14.º, pois não se pode desconsiderar a ressalva que aí se encontra e onde se diz “até à data da apresentação da candidatura”.

Embora se possa conceder que aquela norma não prima pela clareza na sua redacção, certo é que é bem diferente afirmar-se que são aplicáveis as disposições da nova lei “com excepção do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 14.º” ou dizer-se “com excepção do n.º 2 e, até à data da apresentação da candidatura, do n.º 3 do artigo 14.º”.

Daí se deve concluir pela aplicação do n.º 3 do artigo 14.º após a data da apresentação da candidatura2, dado que a sua aplicação fica afastada “até à data da apresentação da candidatura”. (sublinhado nosso)

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2 A ideia resulta expressamente da leitura da versão chinesa da norma em causa.

Por outras palavras, com essa ressalva o que se pretende dizer é que o prazo inicial do período de tempo relevante para a inelegibilidade prevista no artigo 14.º n.º 3 (i.e., os cinco anos anteriores à data da apresentação da candidatura) não é valorado ou tomado em consideração nestes casos, o que significa que aquela inelegibilidade só actua a partir da data de apresentação da candidatura.

Assim sendo, para os candidatos que se encontram na situação prevista no artigo 60.º n.º 5 da Lei n.º 10/2011, a inelegibilidade prevista no artigo 14.º n.º 3, alínea 1) passa a actuar nos seguintes termos:

Sem prejuízo do disposto no número anterior, os candidatos não podem ser ou ter sido, a contar da data da apresentação da candidatura e até à data de celebração da escritura pública de compra e venda da fracção:

1) Promitentes-compradores ou proprietários de prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional ou terreno na RAEM; …” (sublinhado nosso)

Esta leitura é, de resto, reforçada pela Lei n.º 13/2020, onde a idêntica limitação foi imposta, de forma bem mais clara, na disposição transitória prevista no artigo 3.º, n.º 3, onde se determinou o seguinte:

3. O n.º 8 do artigo 14.º e n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011, alterado pela presente lei, é aplicável aos promitentes-compradores que tenham celebrado contrato-promessa de compra e venda ao abrigo do «Regulamento de acesso à compra de habitações construídas no regime de contrato de desenvolvimento para a habitação», devendo calcular-se o prazo estabelecido no n.º 8 do artigo 14.º a partir da data de apresentação da candidatura até à data de escolha da fracção.” (sublinhado nosso)

É, evidentemente, a mesma preocupação e razão de ser que está na base do artigo 60.º n.º 5, alínea 1) da Lei n.º 10/2011.

Assim, afigura-se-nos aplicável à situação reportada nos autos o disposto no n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, sem prejuízo da limitação do período temporal relevante imposta pela disposição transitória contida no artigo 60.º n.º 5, alínea 1) da referida Lei n.º 10/20113.

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3 Poderá discutir-se se esta limitação deveria ou não ser mantida em face da disposição transitória constante do artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 13/2020. Trata-se porém duma questão irrelevante para a boa solução do caso concreto.

Ora, no artigo 14.º n.º 3 da Lei n.º 10/2011 estabelece-se o fundamento de inelegibilidade dos candidatos à compra de habitação económica, que se interessa no presente recurso.

Como se diz no referido Parecer emitido pela 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, “O artigo 14.º da proposta de lei contempla um conjunto de situações que tornam as pessoas por ela abrangidas inelegíveis para se candidatarem à compra de habitação económica. (…)

A Comissão prestou especial atenção à questão dos candidatos não poderem possuir em Macau qualquer prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional. Em face do limite estabelecido na proposta de lei, os representantes do Governo explicaram que esta restrição se aplica aos agregados familiares ou aos indivíduos e que se limita apenas aos prédios urbanos ou fracções com finalidade habitacional, em Macau.4

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4 Parecer n.º 3/IV/2011 da 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, págs. 15 e 16.

Da conjugação das normas legais contidas no artigo 34.º n.º 4 e no artigo 14.º n.º 3, alínea 1) da Lei n.º 10/2011, podemos ver que o Instituto de Habitação deve proceder à resolução do contrato-promessa de compra e venda se verificar, durante o período entre a celebração do contrato-promessa e a emissão do termo de autorização, que o promitente-comprador ou os elementos do seu agregado familiar são ou foram (até um máximo de cinco anos anteriores à candidatura5 e até à data de celebração da escritura pública de compra e venda da fracção) promitentes-compradores ou proprietários de prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional ou terreno na RAEM.

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5 Ou a contar da data da apresentação da candidatura à habitação económica, em conformidade com o artigo 60.º, n.º 5, alínea 1), da Lei n.º 10/2011, já examinado.

Poderia suscitar-se uma objecção a este entendimento: o artigo 14.º n.º 3 não faz qualquer referência aos elementos do agregado familiar, mas sim apenas aos candidatos.

Não se trata dum argumento com importância, face ao regime de candidatura à compra de habitação económica.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que a Lei n.º 10/2011 trata indistintamente como candidato, em várias das suas disposições, o próprio agregado familiar, o que se diz independentemente de quaisquer considerações jurídicas que se pretenda fazer quanto à falta de personalidade e capacidade jurídica desse “agregado”.

Assim, diz-se no n.º 2 do artigo 6.º que “O agregado familiar, divide-se, para efeitos da candidatura, em: 1) Agregado familiar nuclear, se o mesmo for composto exclusivamente por pessoas ligadas ao elemento que apresenta a candidatura por casamento, parentesco ou afinidade na linha recta e adopção; 2) Agregado familiar não nuclear, se o mesmo for composto exclusivamente por pessoas ligadas ao elemento que apresenta a candidatura por parentesco ou afinidade na linha colateral ou união de facto ou, em simultâneo, por estas e pelas pessoas previstas na alínea anterior.”.

No artigo 13.º determina-se que “O IH deve proceder à reserva de fracções para efeitos de venda a agregados familiares ou indivíduos que reúnam os requisitos especiais previstos no artigo 15.º.

E no n.º 1 do artigo 15.º observa-se que “Podem candidatar-se à compra das fracções reservadas nos termos do artigo 13.º os agregados familiares ou indivíduos que, sem prejuízo no número seguinte, reúnam os requisitos gerais previstos no artigo anterior e (…)”.

No artigo 18.º afirma-se que:

1. A declaração de rendimentos mensais e património líquido abrange os rendimentos e património dos elementos do agregado familiar ou do candidato individual.

2. A declaração abrange ainda os rendimentos mensais e o património líquido dos cônjuges dos elementos do agregado familiar ou do cônjuge do candidato individual, quando sejam residentes da RAEM e não façam parte do agregado familiar para efeitos de candidatura.

No artigo 19.º, e relativo ao concurso público, dizem os seus n.ºs 2 e 3 que:

2. O concurso é geral quando a ele possam concorrer os agregados familiares ou os indivíduos que reúnam os requisitos gerais de acesso à compra das fracções previstos no artigo 14.º.

3. O concurso é restrito quando se destine a agregados familiares ou indivíduos que reúnam os requisitos especiais de acesso à compra das fracções reservadas, previstos no artigo 15.º.

E, de forma ainda mais esclarecedora, estipulam os n.ºs 1 e 2 do artigo 21.º:

1. A candidatura é feita mediante entrega do boletim de candidatura e da declaração de rendimentos mensais e património líquido, devidamente preenchidos e assinados pelos candidatos com capacidade jurídica.

2. A candidatura só pode ser apresentada por um elemento do agregado familiar ou pelo candidato individual que, cumulativamente: (…)”. (sublinhado nosso)

Da leitura de todas estas normas resulta que, para efeitos da Lei n.º 10/2011, o vocábulo “candidato” é utilizado indistintamente para o agregado familiar ou para o elemento desse agregado (desconsiderando aqui o candidato individual propriamente dito).

Por isso, é de afirmar que os “candidatos” ditos no n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 se referem aos agregados familiares, em que se incluem os seus elementos, não podendo limitar-se somente ao indivíduo ou representante do agregado familiar que submeteu a candidatura.

Acresce que o artigo 34.º n.º 2 da mesma lei estabelece na sua versão original que “O termo de autorização é emitido pelo IH após confirmação de que o promitente-comprador e os elementos do respectivo agregado familiar reúnem os requisitos previstos no n.º 3 do artigo 14.º”, enquanto nos termos do n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011 o Instituto de Habitação deve proceder à resolução do contrato-promessa se verificar, durante o período entre a celebração do contrato-promessa de compra e venda e a emissão do termo de autorização, que o promitente-comprador ou os elementos do seu agregado familiar são ou foram promitentes-compradores ou proprietários de prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional. (sublinhado nosso)

Assim, é sem dúvida que os (elementos do) agregados familiares têm de cumprir com os requisitos previstos no artigo 14.º n.º 3 da Lei n.º 10/2011 para efeitos de adquisição de habitação económica.

De resto, a questão da utilização do vocábulo “candidato” em relação ao agregado familiar veio a suscitar-se no âmbito da Lei n.º 13/2020, tendo sido alterada a proposta inicial para reflectir uma “mais segura técnica jurídica” e para “evitar eventuais disputas quanto à qualidade de proprietário dos elementos do agregado familiar”:

«A Comissão prestou especial atenção à questão das “candidaturas conjuntas de agregados familiares”. Terão os agregados familiares personalidade jurídica e capacidade de exercício de direitos para celebrar um contrato de compra e venda de bem imobiliário? Poderão os agregados familiares fazer-se representar em acto jurídico por um representante ou mandatário? E, mesmo que se admita a possibilidade de representação, como é que os menores e os demais sem capacidade de exercício de direito confeririam poderes de representação aos elementos do agregado? Quando se recorre à figura do agregado familiar como sujeito para apresentação da candidatura, significa que é o agregado familiar ou que são os elementos do agregado familiar a adquirir a qualidade de contraente e proprietário?

Na sequência do debate havido no seio da Comissão, e a fim de assegurar uma melhor e mais segura técnica jurídica e de evitar eventuais disputas quanto à qualidade de proprietário dos elementos do agregado familiar, por causa da disposição sobre a apresentação da candidatura por agregado familiar enquanto sujeito, foi ajustado o conceito de candidato constante da proposta de lei, ou seja, candidato é “o indivíduo que apresenta a candidatura” [artigo 6.º, alínea 2)]; podem candidatar-se à compra das fracções os residentes, com agregados familiares ou individualmente, que reúnam os requisitos previstos na lei, mas a candidatura deve ser apresentada por um candidato que reúna os requisitos especiais (artigo 14.º, n.os 1 e 2). Por outras palavras, de acordo com as novas disposições, não é o “agregado familiar” que apresenta a candidatura, deixou de existir o conceito de “representante do agregado familiar” e os elementos do agregado familiar também deixaram de ser candidatos. Os elementos dos agregados familiares ou os agregados familiares em geral só podem participar na candidatura mediante “anexação” ao candidato. Isto significa que o requerente só pode ser uma pessoa singular que reúna os requisitos legais. (…) E, em consequência, no que respeita à qualidade de titular do direito de propriedade, a regra é a mesma quer quando se concorre individualmente, quer quando se concorre com o agregado familiar.»6

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6 Parecer n.º 3/VI/2020 emitido pela 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, págs. 14 e 15.

2.2.2. A Lei n.º 10/2011 veio a sofrer alterações decorrentes da entrada em vigor da Lei n.º 11/2015.

No entanto, estas alterações não se mostram relevantes para o nosso caso concreto.

Desde logo, tal como resulta do n.º 1 do artigo 3.º (Disposições transitórias) da Lei n.º 11/2015, tal diploma aplica-se à abertura de concurso geral para aquisição de habitação económica publicada no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 51, II Série, de 18 de Dezembro de 2013”, que não é, evidentemente, o caso reportado nos presentes autos.

Por outro lado, não obstante a alteração introduzida pela Lei n.º 11/2015, sempre se deve dizer que as normas legais pertinentes no presente recurso, nomeadamente os artigos 14.º e 34.º, não sofreram qualquer alteração de monta, na medida em que o artigo 14.º n.º 3 passou a ser o artigo 14.º n.º 4 e o artigo 34.º foi alterado para reflectir essa alteração de numeração, sendo certo que se mantém inalterado o conteúdo essencial das normas.

Daí que a irrelevância dessa alteração legislativa para o nosso caso concreto.

2.2.3. Entretanto, veio a entrar em vigor a Lei n.º 13/2020, que alterou a Lei n.º 10/2011 em vários aspectos relevantes.

Ora, resulta do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020 que:

1. As alterações introduzidas à Lei n.º 10/2011 pela presente lei, não são aplicáveis aos promitentes-compradores e proprietários que anteriormente se tenham candidatado à compra de habitação económica, aplicando-se o disposto na Lei n.º 10/2011, antes da presente alteração, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 4.

2. As alterações introduzidas à Lei n.º 10/2011 pela presente lei, não são aplicáveis aos concursos de habitação económica abertos anteriormente, aplicando-se às respectivas candidaturas e aos posteriores tratamentos, designadamente à selecção de adquirentes, venda das fracções, ónus de inalienabilidade e venda de fracções, isenções fiscais e outros benefícios, bem como regime sancionatório, o disposto na Lei n.º 10/2011, antes da presente alteração, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

3. O n.º 8 do artigo 14.º e n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011, alterado pela presente lei, é aplicável aos promitentes-compradores que tenham celebrado contrato-promessa de compra e venda ao abrigo do «Regulamento de acesso à compra de habitações construídas no regime de contrato de desenvolvimento para a habitação», devendo calcular-se o prazo estabelecido no n.º 8 do artigo 14.º a partir da data de apresentação da candidatura até à data de escolha da fracção.

4. O n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, alterado pela presente lei, é também aplicável ao candidato, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores que, antes da entrada em vigor da presente lei, já se tenham candidatado à compra de habitação económica, devendo calcular-se o prazo estabelecido naquele número nos cinco anos anteriores à data de apresentação da candidatura e até à data de escolha da fracção.

Da leitura desta norma resulta, em primeiro lugar, que as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2020 não são aplicáveis aos promitentes-compradores que anteriormente se tenham candidatado à compra de habitação económica.

É, porém, aplicável o disposto no n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, alterado pela Lei n.º 13/2020, aos promitentes-compradores que já se tinham candidatado à compra de habitação económica, devendo notar-se que o prazo aí previsto deve ser calculado da seguinte forma: nos cinco anos anteriores à data de apresentação da candidatura e até à data de escolha da fracção7 8. (sublinhado nosso)

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7 Em bom rigor, o que se pretendeu dizer foi que seria aplicável a regra contida no artigo 14.º, n.º 8, conforme a alteração dada pela Lei n.º 13/2020, mas com um prazo totalmente distinto (o que resulta do citado artigo 3.º, n.º 4).

8 A talho de foice, diga-se que a introdução de referências a “co-promitentes-compradores”, “comproprietários” e “independentemente da quota-parte que possuam”, constante da nova alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º com a redacção dada pela Lei n.º 13/2020, só aparentemente consubstancia um alargamento do alcance da disposição legal, pois como resulta da pág. 71 do Parecer que acompanhou a proposta de lei, a nova redacção visa uma maior clareza e melhor aplicabilidade (ou seja, tais situações já eram, obviamente, abarcadas pela versão anterior da lei).

Sobre o artigo 3.º (Disposições transitórias) da Lei n.º 13/2020, constata-se no Parecer emitido pela 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa o seguinte:

«Este artigo regula as situações relativas aos promitentes-compradores e proprietários que se tenham candidatado à compra de habitação económica antes da entrada em vigor da presente lei, bem como às candidaturas em curso. O proponente e a Comissão são consensuais quanto às regras de “lei nova para situações novas” e “lei antiga para situações antigas, com excepção das disposições favoráveis constantes da lei nova”.

Com base nessa opção política e nesse raciocínio, foram introduzidos ajustamentos e melhorias na redacção inicial, tendo em vista uma maior clareza e uma melhor aplicabilidade. (…)».9

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9 Parecer n.º 3/VI/2020 da 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, pág. 71.

Nessa ordem de ideias, e no que respeita à situação concreta dos presentes autos, é fácil constatar que a Lei n.º 13/2020 não é aplicável, com excepção do que resulta do seu artigo 3.º n.º 4.

O n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na versão dada pela Lei n.º 13/2020, tem o seguinte teor:

O candidato e os elementos do seu agregado familiar não podem ser ou ter sido, nos 10 anos anteriores à data da apresentação da candidatura e até à data de celebração do contrato-promessa de compra e venda:

1) Promitentes-compradores, co-promitentes-compradores, proprietários ou comproprietários de prédio urbano ou de fracção autónoma com finalidade habitacional, ou de terreno na RAEM, independentemente da quota-parte que possuam, salvo quando a aquisição do imóvel se deu por motivo de sucessão;

2) Concessionários de terreno do domínio privado da RAEM.

Tal norma, a contida no n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, é também aplicável aos candidatos, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores que, antes da entrada em vigor desta lei, já se tenham candidatado à compra de habitação económica, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 3.º da mesma lei, sendo de salientar que, nesse caso, o prazo estabelecido naquele n.º 8 do artigo 14.º deve ser calculado “nos cinco anos anteriores à data de apresentação da candidatura e até à data de escolha da fracção”.

Resumindo, a nova redacção do n.º 8 do artigo 14.º aplica-se também aos promitentes-compradores que tenham apresentado a candidatura e celebrado contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma em regime de habitação económica antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2020.

Por sua vez, nos termos do artigo 34.º, n.ºs 1, 2 e 4 da Lei n.º 10/2011, também na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2020, a venda das fracções de habitação económica depende da emissão do termo de autorização pelo Instituto de Habitação após confirmação de que o promitente-comprador e os elementos do seu agregado familiar reuniam, até à data de escolha da fracção, os requisitos previstos no n.º 8 do artigo 14.º, cabendo ao Instituto de Habitação proceder à resolução do contrato-promessa caso verifique que o promitente-comprador e os elementos do seu agregado familiar não cumprem tais requisitos.

Tal como indica, e bem, o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações do recurso, “em relação aos contratos-promessa de compra e venda já celebrados no âmbito da vigência da Lei n.º 10/2011, mas na sequência de candidatura apresentada ainda no âmbito da vigência temporal do «Regulamento de acesso à compra de habitações construídas no regime de contrato de desenvolvimento para a habitação», a alteração introduzida pela Lei n.º 13/2020 no n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 assume relevância em relação aos factos susceptíveis de integrarem um requisito negativo ali tipificado que se tenham verificado até à data de escolha da fracção, de tal modo que, verificando-se tal requisito se imporá a resolução do contrato-promessa”.

2.2.4. No acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância entende que o art.º 14.º da Lei n.º 10/2011, tanto na sua versão antiga, na versão alterada pela Lei n.º 11/2015, como na versão dada pela Lei n.º 13/2020, não se aplica à situação reportada nos autos.

Ora, já concluímos pela aplicação do n.º 3 do artigo 14.º (na sua versão original) após a data da apresentação da candidatura, sendo que a alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º da Lei n.º 10/2011 não afasta por completo a sua aplicação, e que não é relevante para o nosso caso a alteração feita pela Lei n.º 11/2015 (cfr. ponto 2.2.1. e 2.2.2.).

Quanto à última versão introduzida pela Lei n.º 13/2020, também entendemos que é aplicável o disposto no n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, passando-se porém a contar o prazo desde os cinco anos anteriores à data de apresentação da candidatura e até à data de escolha da fracção (cfr. ponto 2.2.3.).

Da argumentação deduzida no acórdão recorrido resulta que o Tribunal de Segunda Instância considera que a norma do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 não pode aplicar-se retroactivamente à situação dos autos, pois não deve aplicar um critério novo com o qual o interessado não podia minimamente contar, ainda por cima, critério desfavorável ao particular, lesando assim a sua situação jurídica ilicitamente, sob pena de “violação do princípio basilar da aplicação da lei no tempo” previsto no artigo 11.º do Código Civil.

Ora, desde logo, é de salientar que no ordenamento jurídico da RAEM não se encontra nenhuma norma que proíba de modo geral a retroactividade das leis, com excepção da lei penal, cuja proibição decorre do disposto no n.º 1 do art.º 29.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.

Por outro lado, mesmo atenta a disposição do n.º 1 do artigo 11.º do Código Civil, invocado no acórdão recorrido, segundo o qual “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”, certo é que, não obstante a consagração do princípio geral da não retroactividade da lei, no sentido de que as leis só se aplicam para o futuro, tal norma não deixa de prever a possibilidade de existência de leis retroactivas, que se apliquem para o passado, conferindo-se-lhes eficácia retroactiva, com presunção de que ficam ressalvados os efeitos jurídicos já produzidos. Trata-se de uma “retroactividade mitigada, traduzida apenas na sua aplicação aos efeitos pendentes e não aos efeitos extintos ou esgotados na vigência da lei antiga e por maioria de razão, com ressalva dos próprios factos.”10

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10 Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, 11.ª edição, Coimbra Editora, pag. 292.

E “essa presunção não prejudica a aplicação casuística de critérios que possam ser consagrados pelo legislador em disposições de direito transitório”, tal como afirma o Digno Magistrado do Ministério Público.

Na realidade, não são raros os exemplos em que, com as disposições transitórias, se permite a aplicação retroactiva de lei ou de algumas normas legais.

Acresce que, como também nota o Ministério Público nas suas doutas alegações de recurso, há ainda a chamada retrospectividade, também designada de retroactividade inautêntica, uma vez que a lei nova só reclama vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afectar direitos, situações ou posições que, embora constituídos no passado ou ao abrigo de lei anterior, se prolongam no presente11. O que se verifica no presente caso.

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11 Jorge Reis Novais, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra, 2019, págs. 157 e 158; Maria João Matias Fernandes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, Lisboa, pag. 64.

2.2.5. Fundamenta ainda o Tribunal de Segunda Instância a sua decisão com as considerações de justiça, por entender injusto aplicar-se a lei nova, que é a Lei n.º 13/2020, à situação dos autos, dado que, antes da entrada em vigor desta lei, todos os factos pressuponentes de que depende a aquisição do direito à fracção da habitação económica já consumaram e consolidaram.

Desde logo, é de salientar que a norma prevista no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020 não altera a solução a dar à situação do presente caso.

Ora, nos autos foram dados como provados os seguintes factos:

- Em 1 de Junho de 2005, Chang Hong apresentou a candidatura à compra de habitação económica.

- Em 10 de Março de 2011, um dos elementos do agregado familiar celebrou um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma dum edifício então em construção e transmitiu a outrem a sua posição contratual em 18 de Fevereiro de 2013.

- Em 4 de Outubro de 2012, foi assinado o termo de compromisso (para a aquisição de fracção de habitação económica).

- Em 22 de Janeiro de 2013, foi assinado o contrato-promessa de compra e venda da fracção de habitação económica.

Nota-se que a compra de fracção autónoma em 10 de Março de 2011 foi depois da apresentação de candidatura à compra de habitação económica e antes da escolha de habitação económica, que ocorreu no dia 4 de Outubro de 2012, momento em que se outorgou o termo de compromisso. E a cessação da posição contratual do elemento do agregado familiar relativa à fracção autónoma foi pouco depois da celebração do contrato-promessa de compra e venda de habitação económica.

O Tribunal recorrido indica esta data de 4 de Outubro de 2012 como data em que foi emitido o termo de autorização. O que não parece correcto.

Ao abrigo da Lei n.º 10/2011, na sua versão inicial vigente na altura, a venda das fracções de habitação económica depende da existência do termo de autorização, que só é emitido após confirmação de que o promitente-comprador e os elementos do respectivo agregado familiar reúnem os requisitos previstos no n.º 3 do artigo 14.º (artigo 34.º). O que significa que o termo de autorização é emitido após a celebração do contrato-promessa de compra e venda, e não antes.

Por sua vez, a escolha das fracções (artigo 27.º) procede-se antes da celebração do contrato-promessa (artigo 31.º).

Assim, aina na vigência da versão inicial da Lei n.º 10/2011, e ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 34.º, o contrato-promessa de compra e venda reportado nos autos devia ser resolvido.

E a resolução do contrato-promessa de compra e venda é também imposta pela aplicação do disposto dos artigos 34.º n.º 4 e 14.º n.º 8, alínea 1) da Lei n.º 10/2011, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2020, e do artigo 3.º n.º 4 da Lei n.º 13/2020.

É de dizer que, independentemente da “versão” aplicável da Lei n.º 10/2011, o contrato-promessa celebrado pelo interessado sempre teria de ser resolvido pelo Instituto da Habitação, sendo aplicável a inelegibilidade em causa prevista no artigo 14.º.

Daí que não se vê a invocada injustiça com a aplicação da nova lei.

E também não se vislumbram quaisquer expectativas do interessado que tenham sido frustradas por uma alegada eficácia retroactiva (mesmo que inautêntica) do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, tornando-se despiciendas quaisquer considerações sobre a justiça ou a protecção da confiança.

Na verdade, a norma contida no n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011 já previa, ainda na sua versão original, a possibilidade de o contrato-promessa de compra e venda vir a ser resolvido pelo Instituto de Habitação se, durante o período entre a celebração do contrato-promessa de compra e venda e a emissão do termo de autorização, se verificar preenchido o requisito aí previsto, ou seja, o promitente-comprador e os elementos do seu agregado familiar não cumprem os requisitos previstos no n.º 3 do artigo 14.º. Daí que é irrelevante defender que o interessado tenha expectativas legítimas ou deposite alguma confiança, merecedora de protecção, na aquisição de habitação económica, pois ele não podia desconhecer que só com a emissão do termo de autorização é que ficaria definitivamente consolidada a sua posição jurídica como comprador de habitação económica, mesmo que se tenha celebrado o contrato-promessa de compra e venda.

Podendo até dizer-se que a lei nova beneficia, em certa medida, os promitentes-compradores ao reduzir o período relevante (da celebração da escritura pública de compra e venda para a data de escolha da fracção), como explica o Governo (para a alteração ao artigo 14.º, n.º 8, mas que justifica também o período fixado no artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 13/2020):

«A disposição que prevê que, após a escolha da fracção e a celebração do contrato-promessa, o interessado deixa de estar sujeito à restrição de aquisição de imóveis, tem por objectivo proporcionar oportunidades para melhoria das condições de vida dos promitentes-compradores. (…)

O n.º 8 do artigo 14.º da proposta de lei consagra um critério menos restritivo no tocante à delimitação temporal, passando a ser até à “data da celebração do contrato-promessa de compra e venda” em vez de “até à data da celebração da escritura pública de compra e venda”. Por outras palavras, de acordo com o novo pensamento da proposta de lei, não possuir fracções com finalidade habitacional e não poder ser concessionário de terrenos limitam-se ao período anterior à celebração do contrato-promessa, e a partir daí, a lei deixou de impor tal limitação. (…)».12

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12 Parecer n.º 3/VI/2020 da 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, págs. 18 e 38.

Por outro lado, tal como afirma o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do Código Civil, os tribunais e os juízes estão sujeitos à lei e só a ela, pelo que não podem substituir os critérios emergentes do sistema jurídico por critérios de decisões resultantes da sua consciência subjectiva13.

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13 Manuel Fontaine Campos, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, Lisboa, 2014, pág. 62.

E face ao princípio do primado da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau que se extrai do 2.º parágrafo do artigo 11.º, pode dizer-se que a recusa de aplicação de uma norma legal só se justifica com fundamento na sua desconformidade com as normas de valor paramétrico de validade contidas naquele diploma fundamental, dado que “a Lei Básica está no vértice da pirâmide normativa da Região: de acordo com o 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo a pode contrariar”14.

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14 Cfr. acórdão do Tribunal de Última Instância, de 18 de Julho de 2007, Processo n.º 28/2006.

Assim sendo, por não se ver que a disposição transitória do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020 e também a norma do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2020, tenham afrontado qualquer princípio estruturantes da Lei Básica, não se deve recusar a sua aplicação ao caso a que se reporta nos presentes autos.

Acrescentando, é de chamar ainda à colação as razões de interesse público subjacentes na norma legal contida no artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, que são as de melhor aproveitar os recursos públicos, de atribuir os recursos limitados da habitação pública aos residentes da Região Administrativa Especial de Macau com reais necessidades de habitação, evitando-se assim o desperdício dos recursos afectos à habitação pública e a venda de habitação económica construída no regime patrocinado pela Região Administrativa Especial de Macau a indivíduos que demonstrem ter capacidade para adquirir fracções autónomas no âmbito do mercado privado, etc., que justificam a alteração da lei e a existência daquela disposição transitória.15

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15 Cfr. Parecer n.º 3/VI/2020 da 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa.  

Pelo exposto, é de concluir pela aplicabilidade do disposto na alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na redacção dada pela Lei n.º 13/2020, por imposição da norma transitória constante do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020.

2.3. No acórdão ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância decidiu conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal Administrativo, que por sua vez julgou improcedente o recurso interposto da decisão administrativa tomada pelo Presidente do Instituto de Habitação que determinou a resolução do contrato-promessa de compra e venda de habitação económica, anulando a sentença do Tribunal Administrativo bem como a decisão do Presidente do Instituto de Habitação.

Face à nossa posição acima assumida, no sentido de aplicação no caso reportado nos autos da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011, na redacção da Lei n.º 13/2020, e uma vez que está preenchido o requisito aí previsto, é de afirmar que andou bem a Administração ao resolver o contrato-promessa de compra e venda em causa ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011, não merece censura a sentença do Tribunal Administrativo que confirmou a decisão administrativa.

Na verdade, conforma a factualidade assente nos autos, um dos elementos do agregado familiar que se candidatou à aquisição de habitação económica chegou a ser promitente-comprador duma fracção autónoma com finalidade habitacional “nos cinco anos anteriores à data de apresentação da candidatura e até à data de escolha da fracção”: assinou o contrato-promessa da fracção autónoma após a apresentação da candidatura e transmitiu a sua posição contratual depois de escolher a habitação económica e ainda depois de celebrar o contrato-promessa de compra e venda de habitação económica.

Verifica-se, assim, o pressuposto da aplicação previsto no n.º 4 do artigo 34.º da Lei n.º 10/2011, cabendo ao Instituto de Habitação proceder à resolução do contrato-promessa de compra e venda de habitação económica já celebrado, ao qual está vedado outro caminho que não seja a solução legalmente prevista.

Concluindo, deve ser revogado o acórdão recorrido, julgando-se improcedente o recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal Administrativo, mantendo-se o acto administrativo contenciosamente impugnado.

3. Decisão

Face ao exposto, em conferência, acordam em:

A) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, nos termos do al. 1) do n.º 2 do art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e do n.º 4 do art.º 167.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, fixar a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau:

“Por força da disposição transitória contida no n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2020, a norma da alínea 1) do n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 10/2011 na redacção introduzida por aquela lei é aplicável aos candidatos, aos elementos do seu agregado familiar e aos promitentes-compradores ainda que a candidatura à compra de habitação económica e que o contrato-promessa de compra e venda celebrado na sequência dessa candidatura tenham ocorrido antes da entrada em vigor daquela Lei n.º 13/2020.”

B) Revogar o acórdão recorrido, julgando-se improcedente o recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal Administrativo, mantendo-se o acto administrativo contenciosamente impugnado.

C) Ordenar o cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 167.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.

Custas pelo recorrido Chang Hong, com taxa de justiça fixada em 10 UCs.

21 de Julho de 2023

Juízes: Song Man Lei (Relatora)
  José Maria Dias Azedo
  Sam Hou Fai
Tong Hio Fong

 (Feita uma análise mais aprofundada da Lei da Habitação Económica e das respectivas alterações legais, nomeadamente atento o teor do n.º 4 do artigo 13.º da Nota Justificativa da Proposta da Lei da Habitação Económica de 2011, e efectuada uma análise sistemática das respectivas normas legais, chega-se à conclusão de que a disposição transitória prevista na alínea 1) do n.º 5 do artigo 60.º da Lei n.º 10/2011 apenas exige o cumprimento pelo candidato do 2º requisito, sendo dispensado o preenchimento do 1º requisito, ambos previstos no n.º 3 do artigo 14.º da Lei.

Efectivamente, tanto segundo a Lei n.º 10/2011 como a Lei n.º 13/2020, os candidatos nunca são autorizados a possuir imóveis com finalidade habitacional desde a apresentação da candidatura até determinada data, daí que o candidato dos presentes autos não goza de nenhum direito adquirido que merece protecção, concordando que a opinião fixada no presente Acórdão melhor corresponde à intenção legislativa.)

  Choi Mou Pan