REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

Diploma:

Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 2 de Março de 2011

BO N.º:

12/2011

Publicado em:

2011.3.21

Página:

1046-1050

  • A indemnização pecuniária por facto ilícito, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, vence juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o respectivo montante, nos termos dos artigos 560.º, n.º 5, 794.º, n.º 4 e 795.º, n.os 1 e 2 do Código Civil, seja sentença de 1.ª Instância ou de tribunal de recurso ou decisão na acção executiva que liquide a obrigação.
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    Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 2 de Março de 2011

    Processo n.º 69/2010

    ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

    I — Relatório

    Cheang Choi Iong (demandante no pedido de indemnização cível deduzido em processo penal, em que é demandado o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo) interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Tribunal de Última Instância (TUI), do Acórdão de 29 de Julho de 2010, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), no Processo n.º 598/2009, alegando que este Acórdão está em oposição, sobre a mesma questão de direito, com o Acórdão do mesmo Tribunal, de 26 de Maio de 2005, no Processo n.º 43/2005.

    O Acórdão de 26 de Maio de 2005, (acórdão fundamento) do TSI, decidiu que na responsabilidade civil extracontratual só há mora do devedor quando a obrigação se torna líquida (excepto quando a falta de liquidez for imputável ao devedor), sendo que isso acontece na data da decisão de 1.ª instância.

    Já o Acórdão de 29 de Julho de 2010, (acórdão recorrido) do TSI, decidiu que na responsabilidade civil extracontratual só há mora do devedor quando a obrigação se torna líquida (excepto quando a falta de liquidez for imputável ao devedor), sendo que isso acontece com a data do trânsito em julgado da decisão final.

    O recorrente pretende que se acolha a solução do acórdão fundamento.

    Por Acórdão de 15 de Dezembro de 20101, este Tribunal de Última Instância (TUI) reconheceu haver oposição entre os dois mencionados acórdãos - quanto à questão de saber quando é que a obrigação de indemnização, na responsabilidade civil extracontratual, se torna líquida, quando a falta de liquidez não for imputável ao devedor - e determinou o prosseguimento do recurso.

    ———
    1
    Embora, por manifesto lapso, se tenha trocado o sentido dos acórdãos fundamento e recorrido.

    Nenhuma das partes apresentou alegações.

    II — Fundamentos

    1. A questão a resolver

    Trata-se de saber quando é que, na responsabilidade civil extracontratual, há mora do devedor, quando a falta de liquidez não for imputável ao devedor.

    2. Princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar

    Como é sabido, é princípio geral da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos o de que «Aquele que, com dolo ou

    mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (artigo 477.º, n.º 1 do Código Civil).

    No que concerne à obrigação de indemnização o seu princípio director é o de que «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (artigo 556.º do Código Civil).

    Trata-se do princípio da reconstituição natural.

    A lei manda, assim, reconstituir, não a situação anterior à lesão, mas a situação hipotética que existiria se não se tivesse verificado o evento que determina a responsabilidade.2

    ———
    2
    ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, Volume I, reimpressão da 10.ª edição, 2003, p. 905.

    Mas nem sempre é possível ou desejável a reconstituição natural. No primeiro caso, por exemplo, porque o objecto, não fungível, pereceu. E não é desejável quando a reconstituição natural é insuficiente, quando não repare integralmente os danos ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor.

    Em casos como estes, a lei opta pela indemnização em dinheiro.

    É o que estabelece o artigo 560.º, nos seus primeiros três números:

    «Artigo 560.º

    (Indemnização em dinheiro)

    1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível.

    2. Quando a reconstituição natural seja possível mas não repare integralmente os danos, é fixada em dinheiro a indemnização correspondente à parte dos danos por ela não cobertos.

    3. A indemnização é igualmente fixada em dinheiro quando a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor.

    ... »

    Uma segunda questão atinente a esta forma de indemnização, é a de saber como se calcula a indemnização em dinheiro. A tal questão responde o n.º 5 do mesmo artigo 560.º do mesmo diploma legal, estatuindo que «... a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos».

    Tem, pois, o juiz, na sentença, de fixar o valor da indemnização em dinheiro, apurando nessa ocasião (... a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal ...) a situação patrimonial do lesado (situação real) e a que teria nessa data (situação hipotética) se não existissem danos, correspondendo aquela indemnização à diferença destes dois valores.

    Certo, no entanto, que os poderes do juiz estão limitados pelas normas que regem a modificação do pedido (artigos 216.º e 217.º do Código de Processo Civil).

    Por outro lado, tem-se entendido que a norma do Código Civil de 1966, que corresponde ao artigo 560.º, n.º 5 do Código de Macau (o n.º 2 do artigo 566.º) não é aplicável à determinação da indemnização por danos não patrimoniais. «Mas o critério fundamental de compensação deste tipo de danos — o juízo de equidade — exige, por si só, que procurem compensar-se os danos não patrimoniais no momento mais recente possível, aquele em que a avaliação pode, em princípio, ser feita com maior justiça e precisão»3.

    ———
    3
    MARIA DA GRAÇA TRIGO, Incumprimento da Obrigação de indemnizar (interpretação do regime do artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil, com base na análise da jurisprudência), em Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica, Lisboa, 2002, p.1011.

    3. Momento da constituição em mora do devedor

    A simples mora, ou seja, o mero o atraso no cumprimento da obrigação de indemnizar, constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (artigo 793.º, n.º 1 do Código Civil), sendo que «O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» (artigo 793.º, n.º 2 do Código Civil).

    Resta saber — e é este o fulcro da questão a resolver neste processo — quando é que se dá a constituição do devedor em mora.

    A regra geral é a de que «O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir» (artigo 794.º, n.º 1 do Código Civil).

    Há casos, no entanto, em que a interpelação não é necessária para que o devedor fique constituído em mora e, assim, obrigado a indemnizar os danos causados por esta.

    Um destes casos, em que há mora do devedor independentemente de interpelação para cumprir, é o de a obrigação provir de facto ilícito [artigo 794.º, n.º 2, alínea b) do Código Civil].

    Desta norma, com origem no Direito Romano, resulta que quando a obrigação provem de facto ilícito extracontratual a mora conta-se a partir do facto ilícito4.

    ———
    4
    ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., Volume II, reimpressão da 7.ª edição, 2001, p.119.

    Contudo, mesmo que a obrigação provenha de facto ilícito, «Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor» (artigo 794.º, n.º 4 do Código Civil).

    Esta regra (in illiquidis non fit mora) «é correntemente justificada pelo facto de o devedor não poder cumprir, enquanto se não apura o objecto da prestação. É necessário, em primeiro lugar, que o obrigado saiba quanto deve»5.

    ———
    5
    PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume II, 3.ª edição, 1986, p.65.

    Ora, conjugando este preceito com aquele outro, atrás mencionado, segundo o qual «... a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos» (n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil), temos que, em caso de litígio judicial quanto ao valor dos danos, o crédito só se torna líquido quando o juiz o fixa, seja na sentença em 1.ª instância, seja na decisão em recurso, quando o valor fixado anteriormente é alterado ou quando em 1.ª instância, por uma razão ou por outra, nenhum valor foi fixado. Podendo mesmo acontecer que o devedor só entre em mora na execução, se o montante dos danos só nesta fase for liquidado (artigo 564.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

    Embora se não considere aplicável o n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil à fixação dos danos não patrimoniais, a solução descrita também é aplicável a estes danos, já que estes devem ser determinados no momento mais recente possível, como se disse atrás.

    Relegar tal momento para a ocasião em que a decisão final transitasse em julgado seria premiar injustificadamente o lesante à custa do lesado, incentivando o uso dilatório dos meios processuais, apenas com o fim de protelar o momento de constituição em mora.

    Procede, pois, o recurso, impondo-se a revogação do Acórdão recorrido.

    4. O caso dos autos

    O Acórdão recorrido (i) confirmou a sentença de 1.ª instância na parte em que esta fixou determinado montante a título de indemnização por danos não patrimoniais à recorrente. Mas (ii) revogou tal sentença na parte em que esta não atribuiu à recorrente indemnização por danos patrimoniais, a título de incapacidade permanente, e fixou certo montante por tais danos.

    Há, pois, mora do devedor, na primeira situação, a partir da data da Sentença de 1.ª instância e na segunda, a partir da data do Acórdão recorrido.

    Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, juros estes que são os legais (artigo 795.º, n.os 1 e 2 do Código Civil).

    III — Decisão

    Face ao expendido:

    A) Concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido, condenando o demandado a pagar juros de mora sobre o montante relativo à indemnização pela perda de capacidade permanente da recorrente desde a data do Acórdão recorrido e sobre o montante respeitante aos danos não patrimoniais atribuídos à recorrente a partir da data da Sentença de 1.ª instância;

    B) Nos termos do art. 427.º do Código de Processo Penal, fixam a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais:

    A indemnização pecuniária por facto ilícito, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, vence juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o respectivo montante, nos termos dos artigos 560.º, n.º 5, 794.º, n.º 4 e 795.º, n.os 1 e 2 do Código Civil, seja sentença de 1.ª Instância ou de tribunal de recurso ou decisão na acção executiva que liquide a obrigação.

    C) Ordenam o cumprimento do disposto no art. 426.º do Código de Processo Penal.

    Sem custas.

    Fixam a quantia de mil e duzentas patacas de honorários ao Patrono do demandante.

    Macau, 2 de Março de 2011.

    Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) — Sam Hou Fai — Chu Kin — Lai Kin Hong — Ho Wai Neng


        

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