Recorrente: Burmeister & Wain Scandinavian Contractor A/S.
Recorrido: Secretário para a Segurança.
Assunto: Nulidade da sentença. Falta de fundamentos. Fundamentação jurídica por remissão. Legitimidade processual. Princípio do contraditório. Decisão-surpresa. Nulidade processual. Violação da Lei Básica. Forma de processo. Conhecimento incidental da legalidade de regulamento administrativo. Regulamentos administrativos. Entrada e permanência na Região.
Data da Sessão: 18 de Julho de 2007.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I — Não constitui a nulidade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil a fundamentação jurídica por remissão para o parecer do Magistrado do Ministério Público, proferido nos termos do artigo 69.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
II — A empresa que foi contratada para prestar serviços em Macau, para a qual trabalham dois técnicos, tem legitimidade processual para a interposição do recurso contencioso da decisão que indefere pedido de prorrogação de permanência dos dois trabalhadores em Macau.
III — O meio processual para impugnar a omissão a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil não é o recurso da sentença onde se decidiu a questão de direito sobre a qual as partes não tiveram a oportunidade de se pronunciarem, mas a reclamação da nulidade processual em que consistiu a referida omissão.
IV — Nos casos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas constantes de leis ou regulamentos administrativos que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, ainda que nenhuma parte suscite a questão da ilegalidade, sem prejuízo do disposto no artigo 143.º daquela Lei.
V — É o pedido deduzido pela parte que determina a forma de processo a utilizar.
VI — No recurso contencioso de acto administrativo o juiz pode conhecer por sua iniciativa, incidentalmente, da ilegalidade de um regulamento, com fundamento no princípio da hierarquia das normas.
VII — O Chefe do Executivo e o Governo podem aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica (princípio da reserva de lei) e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei, segundo o qual o regulamento não pode contrariar os actos normativos de força hierárquica superior, designadamente, a Lei Básica, as leis, nem os princípios gerais de Direito, incluindo aqui os de Direito Administrativo.
VIII — O artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 pode ser considerado norma complementar do regime constante da Lei n.º 4/2003.
O Relator, Viriato Manuel Pinheiro de Lima.
I — Relatório
Burmeister & Wain Scandinavian Contractor A/S interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 20 de Julho de 2005, que indeferiu o pedido de prorrogação excepcional de permanência em Macau, pelo prazo de 130 dias para o Eng.º Peter Odmand Jorgensen e de 180 dias para o Eng.º Jens Lembrecht Seeberg, trabalhadores daquela.
Por Acórdão de 9 de Março de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) deu provimento ao recurso, anulando o mencionado acto administrativo.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança o presente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), formulando as seguintes conclusões:
I. POR EXCEPÇÃO
1. Atenta a factualidade do acto administrativo recorrido, o Consórcio recorrente não possui a contitularidade da “relação jurídica controvertida em que se inseriu o acto recorrido”.
2. A jurisprudência portuguesa, a propósito da norma equivalente à do artigo 33.º, a) do CPAC, vem referindo o “imediatismo” que necessariamente emerge da caracterização do “interesse directo, pessoal e legítimo” em termos de “uma vantagem que se repercuta imediatamente na esfera jurídica do recorrente”, a qual, em face das circunstâncias do caso concreto, designadamente as que se referem nos artigos 7.º a 11.º das presentes alegações, e de se tratar de um acto ainda não eficaz, não se verifica no caso vertente.
3. pelo que não pode reconhecer-se a legitimidade activa do recorrente, quer fundada na primeira, quer na segunda partes do artigo 33.º, alínea a) do CPAC, o que importa a rejeição do recurso em primeira instância nos termos do artigo 46.º, n.º 2 d) do mesmo Código.
4. O Tribunal de Segunda Instância não se pronunciou sobre a alegada excepção da “irrecorribilidade do acto administrativo recorrido”, o qual, não produzindo efeitos externos, não é recorrível nos termos do artigo 28.º, n.º 1 do CPAC, devendo, por isso anulado o Acórdão recorrido e, rejeitado o recurso em primeira instância por força do artigo 46.º, n.º 2, c) do mesmo Código.
5. O Tribunal de Segunda Instância concedeu provimento ao recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para a Segurança, na sequência da posição que assumiu ante a questão incidental da legalidade do RA n.º 17/2004, que apreciou em razão de competência, incidente esse que o próprio Tribunal levantou “ex officio”, sem que o mesmo tenha sido suscitado por qualquer das partes no recurso contencioso.
6. Da análise das normas constantes da Lei Básica relativas, em termos genéricos, às competências dos tribunais, e das normas especificamente voltadas para esta matéria, insertas na LBOJ (artigo 36.º, 8) e no CPAC (artigo 88.º) não resulta essa competência a título oficioso mas somente quando o tribunal seja chamado a pronunciar-se a pedido de qualquer entidade com legitimidade para o fazer, em processo próprio ou na dependência de qualquer processo mas com expressa impugnação de normas.
7. O Tribunal de Segunda Instância fundamenta o seu poder de apreciação oficiosa nos artos 7.º do Código Civil e 2.º da Lei Básica, mas da análise dessas normas não se retira, de todo, nem directa nem indirectamente como corolário de qualquer princípio, nada que com tal poder se relacione.
8. Do que se refere nos precedentes pontos 5 a 7 resulta que o Acórdão recorrido violou o “princípio do contraditório” plasmado no artigo 3.º do CPC, aplicável “ex vi” o artigo 1.º do CPAC; o “princípio da congruência ou da correspondência entre a decisão e o pedido”, o qual se extrai do disposto no artigo 42.º do CPAC; os princípios da “estabilidade da instância” (artigo 212.º do CPC) e do “dispositivo” (artigo 564.º, n.º, 1.º do CPC); o “princípio da adequação formal”, consagrado no artigo 7.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo contencioso administrativo (por se não dar cumprimento ao prescrito nos artigos 88.º e ss do CPAC).
9. Sobressai claramente das disposições invocadas da LBOJ e do CPAC, e bem assim da doutrina, embora neste particular escassa na RAEM, que se tem em vista o controle da legalidade de normas individualizadas, concretamente aplicadas ao caso sob escrutínio, e não de todo o diploma em que elas se inserem, na sua globalidade, na sua unidade.
10. Por se não cingir à questão da legalidade da norma concretamente em escrutínio, ignorando-a, e bem assim ignorando todas as outras, empreendendo a apreciação da legalidade do diploma em si, baseando-se na natureza do seu objecto, transpôs o Tribunal de Segunda Instância os limites das suas competências, e julgou excedendo manifestamente os poderes de cognição que lhe são conferidos por lei.
II. POR IMPUGNACÃO
11. A tese do Acórdão recorrido sobre a competência do Chefe do Executivo para a emissão de Regulamentos autónomos (sobre a qual assenta a declaração de ilegalidade do RA n.º 17/2004) não espelha nem totalmente nem fielmente a singularidade do modelo constitucional patente na Lei Básica da RAEM.
12. A inexistência da figura do Decreto-Lei na Lei Básica significa o abandono do sistema de partilha do poder legiferante (apenas no sentido estrito desta expressão, como o poder de fazer leis no sentido orgânico, formal e material do termo) mas da Lei Fundamental sobressai claramente a possibilidade de o Chefe do Executivo exercer um “poder de normação”, um poder originário de criar normas jurídicas (gerais e abstractas), de normativizar, mediante Regulamentos.
13. A tese do Acórdão recorrido desenvolve-se em tomo do que, a propósito dos Regulamentos Administrativos, mas não por referência à Lei Básica da RAEM, considera a doutrina portuguesa, e não dá o devido relevo ao que especificamente estabelece a Lei Fundamental nos Capítulos V e VI, além de noutras disposições.
14. A Lei Básica da RAEM confere expressamente ao Chefe do Executivo e ao Governo o poder de editarem Regulamentos e não possui qualquer norma equivalente à do artigo 115.º, n.º 7.º, da Constituição da República Portuguesa, isto é, qualquer norma que expressamente não admita a existência de Regulamentos totalmente independentes.
15. O Acórdão recorrido não aprofunda a questão dos Regulamentos independentes (da sua admissibilidade na Lei Básica) e adere a uma doutrina portuguesa recente e muito condicionada pelo texto constitucional, sem ter em conta a profunda alteração operada em 1982, a qual instituiu um regime que não encontra qualquer correspondência na Lei Básica da RAEM, e sem a qual muito diferente seria, aliás como já fôra anteriormente, o entendimento dessa mesma doutrina, a qual, não obstante, continua a admitir os Regulamentos independentes, apenas habilitados pela lei ordinária ou pela própria constituição.
16. Ante a observação dos diversos preceitos dos Capítulos I, III, IV, V e VI, maxime os dos arts. 4.º, 6.º, 40.º, 43.°, 50.º, 64.º, 65.º, 71.º, 103.º, 115.º, 116.º, 118.º, 121.º, 123.º a 127.º, 129.º, 130.º e 132.º, podemos concluir que é manifesta a intenção da Lei Básica em instituir um sistema que, pese embora monista, admite um poder regulamentar/normativo, primário, apenas limitado pelo princípio da legalidade nas suas vertentes de prevalência da lei e de reserva de lei (artigo 65.º).
17. Face ao estabelecido na Lei Básica, os Regulamentos do Chefe do Executivo não se destinam apenas a executar qualquer lei formal pré-existente (lei de princípios), nem se mostram carecidos de leis que a título de habilitação subjectiva e objectiva os legitimem (leis habilitantes), o que todavia não significa que não possa suceder (como já tem sucedido) quando se pretenda deva e possa cometer ao Governo qualquer iniciativa normativa compreendida na esfera de competência da Assembleia.
18. O “poder regulamentar” do Chefe do Executivo caracteriza-se por ser um poder de normação originário, primário, directamente emergente da Lei Básica (e não residual, a título de edição de regulamentos meramente de execução.)
19. Pode-se seguramente afirmar que as normas dos arts 4.º, 6.º, 40.º e 43.º, especialmente por usarem as expressões, “nos termos da lei”, “protegido por lei”, “mediante leis”, e “em conformidade com a lei”, que só podem referir-se à lei em sentido formal, constituem verdadeiras e autênticas reservas de lei em matéria de propriedade e de direitos fundamentais, a acrescer à que consta do artigo 71.º, 3).
20. O artigo 3.º, n.º 1, do Regime geral das infracções administrativas e respectivo procedimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro estabelece que “os regimes material e procedimental aplicáveis às infracções administrativas são fixados nas leis ou regulamentos que as prevêem e sancionam”, o que clara e totalmente legitima o Regulamento na sua parte sancionatória material e processual.
21. Ainda que assim se não entenda, isto é, que se considere o objecto e ou a norma do artigo 4.º do RA n.º 17/2004 como «matéria conexa com direitos fundamentais» sempre o mesmo Regulamento se mostrará legal porque, nesta matéria em concreto, especialmente a coberto da própria Lei Básica (artigo 115.º) e também habilitado pela Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais (Lei n.º 4/98/M), no caso de se lhe atribuir a natureza de Regulamento de execução, ou independente, carecido de lei de princípios ou de habilitação.
22. O conteúdo normativo do Regulamento em apreço enquadra-se totalmente no artigo 115.º da Lei Básica, sem que se possa dizer que esta disposição invada o domínio dos direitos fundamentais em relação aos quais se estabelece, noutras normas, uma protecção em forma de reserva de lei, pois é a Lei Básica, ela própria, que, de forma sistemática e coerente, habilita o Chefe do Executivo/Governo a normativizar sobre a matéria em causa.
23. Em todo o caso, o RA n.º 17/2004 também se há-de ter por habilitado pela Lei n.º 4/98/M, em vigor nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 1/1999, mormente atento o disposto nos seus arts. 1.º (“política de emprego”), 6.º, “maxime” alínea f) (que deve ter-se por referida ao desemprego dos residentes), 7.º, “maxime” alínea a) (“o aperfeiçoameuto da legislação sobre as relações de trabalho e a revisão do seu regime sancionatório;”) e 9.º (sobre a admissão da contratação de trabalhadores não residentes), pois o que faz aquele Regulamento é precisamente a execução destes comandos normativos, ao abrigo do artigo 10.º da mesma Lei, conjugadamente com o n.º 4 do Anexo IV, “ex vi” o artigo 16.º da Lei n.º 1/1999.
24. Além de não ter tido em consideração outras normas, e princípios, referidos ao longo das presentes alegações, o Acórdão recorrido especialmente violou ou aplicou erradamente os preceitos e princípios constantes dos artigos:
1) 28.º, n.º 1, 33.º a), 42.º, 46.º n.º 2 d) e 88.º do CPAC;
2) 3.º, 7.º, 212.º e 564.º n.º 1, do CPC, ex-vi o artigo 1.º do CPAC;
3) 36.º n.º 8 da LBOJ;
4) 7.º do CC;
5) 2.º, 50.º 5), 64.º 5) e 115.º da Lei Básica;
6) 3.º n.º 1 do DL n.º 52/99/M, de 4 de Outubro;
7) 1.º, 6.º f), 7.º a), 9.º e 10.º da Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho;
8) 4.º n.º 2, do RA n.º 17/2004.
A ora recorrida apresentou contra-alegação.
A Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu douto parecer em que sustenta o seguinte:
Quanto às questões prévias suscitadas pela entidade recorrente:
II — Os Factos
a) Tendo sido requerida a prorrogação da autorização de permanência em Macau do Eng.º Peter Odmand Jorgensen e do Eng.º Jens Lembrecht Seeberg, foi emitido no processo o seguinte parecer:
Assunto: | Autorização de permanência |
Interessados: | Peter Odmand Jorgensen |
Jens Lembrecht Seeberg |
Ref.ª: INF. MIG 321/2004/E
Na sequência do despacho do Ex.mo Secretário para a Segurança sobre o nosso parecer de 30/05/2005, que aqui se dá por reproduzido, vêm os requerentes, em sede de audiência prévia, dizer, em breve síntese, que:
Pugnando pela autorização do pedido.
Não lhe assiste, de todo, a razão de que se arroga.
Vale a pena transcrever aqui alguns passos do parecer que em 15/12/2004 emitimos sobre esta matéria:
“No passado vinha sendo usada a autorização de permanência, do regime geral de entrada e permanência em Macau, para acorrer às situações com os contornos do caso vertente, não enquadráveis na legislação sobre o trabalho de não residentes, e não regulados em qualquer outro diploma legal, mas merecedoras de especial tratamento por parte da Administração da RAEM”.
“Acontece que o RA n.º 17/2004, no seu artigo 4.º, vem claramente, embora, digamos, que de forma residual, regular essas mesmas situações, designadamente excluindo-as (n.º 1, 1)) da noção de “trabalho ilegal”, que o mesmo é dizer, não as considerando integráveis no regime de importação de mão-de-obra, e (n.º 2) limitando o período de permanência a um máximo de 45 dias por cada período de 6 meses, consecutivos ou interpolados”.
“Assim, e em relação ao comum das situações de exercício de actividades de prestação de serviços de direcção, técnicas, de controlo de qualidade ou de fiscalização, não qualificáveis como importação de mão-de-obra, há-de, forçosamente, aplicar-se o artigo 4.º do RA n.º 17/2004, nos termos e com as condicionantes aí previstos”.
“Sucede, o que nos causa alguma estranheza, que o caso em apreço, apesar de aparentemente se revestir dos contornos descritos no citado artigo 4.º, n.º 1, 1), e em princípio aí enquadrável, acabou, no entanto, por ser objecto de um comum pedido de importação de mão-de-obra, e merecer despacho de indeferimento, em razão de mérito, o que estranhamente contraria toda a factualidade descrita e argumentação expendida pelo interessado quanto à natureza da sua relação laboral e fins da sua permanência em Macau”.
“Algo pois nos escapa ... e nos leva a sugerir que o CPSP formula um pedido de esclarecimento junto da DSAL ... ”.
Respondeu aquela Direcção de Serviços dizendo que, em muito breve síntese:
“... o caso sub judice cabe indiscutivelmente no âmbito de aplicação da norma [do artigo 4.º do RA n.º 17/2004]”.
No nosso parecer de 30/05/2005 esclarecemos que desde que o fundamento do pedido de permanência seja exclusivamente de carácter laboral, há-de forçosamente aplicar-se aquele artigo 4.º, com exclusão de qualquer outra norma legal.
E adiantámos ainda o seguinte:
“Sendo certo que, e neste particular todos estamos de acordo, poderá ser concedido, ao abrigo do regime geral, qualquer período de permanência, se outro for o fundamento do pedido, que não o do exercício de uma actividade laboral, e que os fins que motivam o mesmo pedido, integrem também um de natureza laboral por período não superior a 45 dias — embora aqui com algumas reservas porque não cremos que na prática venha a configurar-se tal pluralidade de fins, admitindo-a, pese embora”.
Os requerentes, todavia, persistem no entendimento de que o regime geral de autorização de permanência pode, e no caso concreto deve, ser aplicado em quaisquer circunstâncias, ainda que enquadráveis no artigo 4.º do RA n.º 17/2004, ao arrepio desta norma, excepcionando-a.
Ora, o RA n.º 17/2004, visa precisamente chamar a si, em exclusivo, retirando do âmbito de aplicação de quaisquer outros diplomas tudo o que se prenda com a “prestação de trabalho” por não residentes (e por maioria de razão com a permanência para esse fim) e designadamente tudo o que se considere “trabalho ilegal”.
Por outro lado criando o seu próprio regime de excepção (artigo 4.º) para as situações de prestação de trabalho de não residentes não enquadráveis no seu âmbito primordial de aplicação constante do artigo 2.º.
Ou seja, o RA n.º 17/2004, que se dedica à proibição e repressão do trabalho ilegal e, consequentemente, da permanência com esse fim, cria as suas próprias excepções e delimita-as em termos precisos, exaustivos e taxativos, e por isso excluindo-as do âmbito de aplicação de quaisquer outros diplomas.
Não fazendo, pois, qualquer sentido que para além deste regime de excepção sempre possa aplica-se um outro, mais flexível e sem limitações, muito menos quando esse outro se trate de um regime geral — o que a ser assim esvaziaria de sentido a lógica da consagração do regime especial do RA n.º 17/2004.
Como poderia, pergunta-se, suprir-se a ilegalidade resultante do incumprimento de uma norma de carácter excepcional, imperativa, taxativa, de um regime especial?
Igualmente não se compreende, diga-se a talho de foice, embora tal não nos diga directamente respeito, porque os requerentes não concentram os seus esforços, como julgamos que deveriam, em fazer valer a excepcionalidade da natureza da sua relação laboral no sentido de um outro tratamento por parte das instâncias competentes, ao invés de pretenderem impor nesta sede o que é manifestamente inviável!
Quanto “às mais elementares regras da interpretação jurídica”, oferece-se-nos dizer que não é de interpretação jurídica que aqui se trata mas sim de hierarquia das fontes do direito “rectius” de conflito de normas emanadas de fontes de igual posição hierárquica.
É por demais evidente o conflito de normas de um e outro diplomas, conflito esse gerado depois da criação do RA n.º 5/2003 e com a entrada em vigor do RA n.º 17/2004!
Como pode a Administração autorizar um pedido ao abrigo de um diploma que é manifestamente não autorizável ao abrigo de um outro que é posterior e configura um regime jurídico especial?
É que “as mais elementares regras” não da interpretação jurídica mas do conflito de normas, são estas:
Sendo certo que o RA n.º 5/2003 não se “auto intitula” lei de princípios. A lei de princípios é a Lei n.º 4/2003, a qual, precisamente por enunciar apenas princípios, não regulamenta as questões relativas à permanência, cometendo essa tarefa ao RA n.º 5/2003.
Acresce que dos pareceres que vêm recaindo sobre a matéria em apreço e designadamente sobre o caso concreto, e bem assim das posições que o Secretário para a Segurança vem assumindo, resulta claramente, julgamos, toda uma consciência da importância para a RAEM de que de um modo geral se revestem as funções, neste caso dos engenheiros em questão (pelo que escusado será salientá-las de forma tão veemente), e bem assim do cuidado, celeridade, desembaraço, e até afago com que são decididos os pedidos respectivos.
Simplesmente, com a entrada em vigor do RA n.º 17/2004, e pelas razões expostas, e porque designadamente a Administração está vinculada ao cumprimento da lei, entendemos de todo não poder manter-se tal atitude nos casos em que, como no presente, da mesma resultaria uma clara violação deste diploma legal.
Porquanto, nos termos das disposições legais invocadas e no uso das competências de que o Secretário para a Segurança está investido, sugerimos que:
Este o nosso parecer.
À consideração do Ex.mo Secretário para a Segurança”.
b) Sobre este parecer foi emitido o seguinte despacho do Secretário para a Segurança, em 20 de Julho de 2005:
“Concordo. Indefiro. Proceda-se conforme proposto”.
É este o acto recorrido.
III — O Direito
As questões a apreciar são as seguintes:
a) Se Burmeister & Wain Scandinavian Contractor A/S tinha legitimidade para interpor o recurso contencioso;
b) Se o Acórdão recorrido é nulo por não se ter pronunciado sobre a questão da irrecorribilidade do acto recorrido, suscitada pela entidade recorrida na contestação do recurso contencioso e consistente em a decisão de indeferimento estar suspensa até ser encontrada a adequada solução legal para o caso em apreço;
c) Se o TSI não pode conhecer oficiosamente da questão da violação da Lei Básica num caso colocado à sua apreciação;
d) Se o Acórdão recorrido violou o princípio do contraditório, por não ter sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da violação da Lei Básica;
e) Se o Acórdão recorrido violou o princípio da adequação formal por não ter dado cumprimento ao disposto no artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso ou o princípio dispositivo por ter condenado em coisa diversa do pedido;
f) Se o Acórdão recorrido violou os seus poderes de cognição ao ter declarado ilegal todo o Regulamento n.º 17/2004, não cuidando de aquilatar da legalidade da norma concretamente ao caso em apreciação;
g) Se o Acórdão recorrido violou os artigos 2.º, 50.º 5), 64.º 5) e 115.º da Lei Básica ao entender que esta não permite a elaboração de regulamentos independentes.
A) Questões prévias
1. A legitimidade processual no recurso contencioso
A primeira questão a apreciar é a de saber se Burmeister & Wain Scandinavian Contractor A/S tinha legitimidade para interpor o recurso contencioso.
Os dois engenheiros, cuja permanência em Macau está em causa, são empregados daquela empresa, responsáveis pela supervisão dos trabalhos de instalação eléctrica e encarregados da montagem da técnica para reduzir as emissões de óxido de azoto na central de produção de energia eléctrica de Coloane, por força de contrato celebrado com a CEM.
Parece evidente que só permanecendo em Macau podem estes técnicos desenvolver a actividade que lhes cabe, pois não se trata de trabalho que possa ser realizado à distância.
Tem, pois, a empresa a que pertencem, todo o interesse na sua permanência em Macau, a fim de poder cumprir o contrato que celebrou com a empresa produtora e distribuidora da energia eléctrica em Macau.
Ora, a legitimidade no recurso contencioso cabe, além do mais, às pessoas singulares ou colectivas que se considerem titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que tivessem sido lesados pelo acto recorrido ou que aleguem interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso [artigo 33.º, alínea a) do Código de Processo Administrativo Contencioso].
Embora aos técnicos também pudesse ser reconhecida legitimidade para a interposição do recurso contencioso, a empresa para a qual trabalham também dispõe de interesse no provimento do recurso. Trata-se de interesse directo, pessoal e legítimo, pelo que tinha legitimidade processual para a interposição do recurso contencioso.
Aliás, como bem lembra a Ex.ma Magistrada do Ministério Público, o TUI decidiu num caso com semelhanças com o presente (Acórdão de 28 de Abril de 2004, no Processo n.º 8/2004) que tem legitimidade processual para interpor recurso contencioso do acto que nega autorização de permanência em Macau a determinado indivíduo para efeitos laborais, ao interessado na contratação do mesmo trabalhador não-residente.
Improcede a questão suscitada.
2. Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia
Entende a entidade recorrente que o Acórdão recorrido é nulo por não se ter pronunciado sobre a questão da irrecorribilidade do acto recorrido, suscitada pela entidade recorrida na contestação do recurso contencioso e consistente em a decisão de indeferimento estar suspensa até ser encontrada a adequada solução legal para o caso em apreço.
Como se sabe, a causa de nulidade da sentença a que se refere a primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil (É nula a sentença ... quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) está relacionada com o dever imposto ao juiz na sentença, a que se refere o n.º 2 do artigo 563.º do mesmo diploma legal: o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
E, na verdade, na contestação ao recurso contencioso a ora entidade recorrente suscitou a questão da irrecorribilidade do acto recorrido, consistente em a decisão de indeferimento estar suspensa até ser encontrada a adequada solução legal para o caso em apreço, pelo que seria inútil a lide.
Mas sobre esta matéria, pronunciou-se, no seu visto inicial, o Digno Magistrado do Ministério Público, nos seguintes termos:
“Por outro lado, pelo facto de ter sido atribuído efeito suspensivo à execução da decisão de indeferimento e, por força de tal, pelos vistos, os interessados/trabalhadores terem podido permanecer na RAEM para além dos prazos de prorrogação que eram requeridos, não implica, por si, que haja que rejeitar o recurso, por inutilidade da lide, por se entender encontrarem-se satisfeitas as respectivas pretensões”.
E, a propósito desta passagem do parecer, o Acórdão recorrido diz o seguinte:
“Outrossim, tal como já observou e concluiu perspicazmente o Digno Representante do Ministério Público no seu douto parecer inicial, à recorrente é sempre juridicamente útil o conhecimento do seu recurso, porque a sua situação subjectiva a nível de direito iria, com eventual provimento do recurso, sair cabalmente protegida”.
Quer dizer, o Acórdão recorrido emitiu pronúncia — embora em termos algo lacónicos — sobre a questão suscitada, pelo que não se pode dizer que enferme de nulidade por omissão de pronúncia.
De resto, este Tribunal de Última Instância já se pronunciou nos Acórdãos de 14 de Julho de 2004, no Processo n.º 21/2004 e de 13 de Setembro de 2006, no Processo n.º 22/2006, no sentido que “Não constitui a nulidade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil a fundamentação jurídica por remissão para o parecer do Magistrado do Ministério Público, proferido nos termos do artigo 69.º do Código de Processo Administrativo Contencioso”.
Improcede, pois, a questão suscitada.
Outra questão seria a de saber se a pronúncia mencionada foi correcta ou não, ou seja se o Acórdão recorrido tem razão quando entende que o acto administrativo era recorrível por ter utilidade para as pretensões da interessada. Mas esta questão não a podemos apreciar, por não ter sido suscitada pela entidade recorrente, que se limitou a arguir a nulidade do Acórdão recorrido, nesta parte.
3. Violação do princípio do contraditório. Nulidade processual
Vejamos, agora, a questão a que nos referimos na alínea d): se o Acórdão recorrido violou o princípio do contraditório, por não ter sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da violação da Lei Básica.
Efectivamente, o Acórdão recorrido suscitou oficiosamente a questão da violação da Lei Básica, que não foi arguida pela recorrente no recurso, nem nunca foi discutida no processo.
Concorda-se que, aparentemente, foi violado o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, segundo o qual, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Simplesmente, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil terá consistido numa nulidade processual, a da omissão do convite às partes para se pronunciarem sobre a questão, omissão esta que influiu na decisão da causa (artigo 147.º, n.º 1 do Código de Processo Civil)1.
1 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1981, Vol. III, p. 109 e M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, 2.ª ed., p. 54 e 55.
Ou seja, não foi o Acórdão recorrido que praticou a violação processual mencionada. Com a notificação do Acórdão recorrido as partes ficaram a saber que houve uma omissão de um acto processual, que ocorreu antes da prolação do Acórdão, que terá dado origem a uma nulidade processual, e deveriam tê-la suscitado no momento e pelo meio próprio, que é uma reclamação (artigo 148.º do Código de Processo Civil), para o relator do processo — e não por meio de recurso para um tribunal superior — nos termos previstos no n.º 1 do artigo 151.º do Código de Processo Civil. E, a ser procedente a nulidade processual, esta conduziria à anulação dos actos posteriores, nos termos do n.º 2 do
artigo 147.º do Código de Processo Civil (o Acórdão recorrido e actos complementares) a fim de ter lugar o acto omitido e, após pronúncia das partes, ou decorrido o prazo para tal, seria, então, proferido novo Acórdão2, que poderia ser no mesmo sentido do anterior ou com outro conteúdo.
Em suma, há que distinguir a nulidade processual — que no caso terá consistido numa omissão de um acto processual e de que cabia reclamação para o relator do processo no TSI — do recurso jurisdicional para um tribunal superior — que tem por objecto um erro de julgamento, que não está em causa na questão em apreciação.
Improcede, pois, a questão suscitada.
4. Fiscalização da conformidade das leis com a Lei Básica por parte dos tribunais
Abordemos, agora, a questão de saber [alínea c) de III] se o TSI poderia ter conhecido oficiosamente da violação da Lei Básica pelo Regulamento.
A entidade recorrente não põe em causa que os tribunais possam conhecer das violações da Lei Básica por normas hierarquicamente inferiores. Mas defende que só o podem fazer a requerimento das partes e não oficiosamente. Para tal invoca o artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e o artigo 36.º, alínea 8) [deveria querer referir-se à alínea 9)] da Lei de Bases da Organização Judiciária, que se referem a “julgar processos de impugnação de normas”.
Pois bem.
A Lei Básica é a lei fundamental da Região Administrativa Especial de Macau, constituindo como que o seu estatuto básico, previsto expressamente no artigo 31.º da Constituição da República Popular da China. Consagra direitos fundamentais dos residentes e de outras pessoas, a estrutura política da Região e as políticas a desenvolver.
A revisão da Lei Básica, como lei fundamental, obedece a um procedimento rígido3: as propostas de revisão só podem ser apresentadas pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, pelo Conselho de Estado ou pela Região Administrativa Especial de Macau, tendo sempre de ser ouvida a Comissão da Lei Básica da Região (artigo 144.º).
Por outro lado, a Lei Básica está no vértice da pirâmide normativa da Região: de acordo com o 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo a pode contrariar.
Ao referir-se à relação entre a Lei Básica da RAEM e a Constituição chinesa, o Professor XIAO WEIYUN4 afirma expressamente que “A Lei Básica da RAEM é a concretização e positivação da Constituição. Esta dispõe apenas no artigo 31.º, como princípio, a política de “um país, dois sistemas”, sem prescrever sobre as questões mais concretas. Por seu lado, a Lei Básica da RAEM dispõe com pormenor, através de um preâmbulo, nove capítulos, 145 artigos e três anexos, sobre a matéria de contexto histórico do seu nascimento, as políticas e directivas essenciais do País em relação a Macau, o relacionamento entre as Autoridades Centrais e a RAEM, os direitos e deveres fundamentais de cidadãos de Macau, o sistema político, a economia e a cultura. Torna-se concretizada e positivada na Constituição a política de “um país, dois sistemas”, permitindo a concretização e a viabilidade efectiva do artigo 31.º da Constituição”.
O mesmo Professor salienta ainda, “Ela (a Lei Básica) determina claramente as competências das Autoridades Centrais, a fim de assegurar a unificação do país e a integridade da soberania e do território nacional, e ao mesmo tempo o poder de alto grau de autonomia da RAEM, ... permitindo estabelecer, no pressuposto de velar “um país”, certas disposições da Lei Básica diferentes da Constituição e das Leis5.
A Lei Básica comunga, portanto, das características normalmente associadas às constituições políticas dos Estados, embora formalmente não o seja já que a Região Administrativa Especial de Macau não é um Estado.
Nenhuma norma da Lei Básica, em concreto, atribui aos tribunais, de forma expressa, a possibilidade de conhecer de violações da Lei Básica por normas jurídicas hierarquicamente inferiores, constantes de leis, regulamentos ou de outros actos normativas.6
Não obstante, esse poder dos tribunais extrai-se por interpretação conjugada de várias normas da Lei Básica.
Na verdade, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 19.º da Lei Básica, “Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, salvo as restrições à sua jurisdição que se devam manter, impostas pelo ordenamento jurídico e pelos princípios anteriormente vigentes em Macau”.
Como se viu, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica “Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta Lei”.
Ora, não tendo a Lei Básica instituído nenhum mecanismo, designadamente de carácter político, para resolver eventuais contradições entre a Lei Básica e normas jurídicas de outros diplomas vigentes que se suscitem em processos judiciais, daqui não pode deixar de decorrer que é aos tribunais, nos casos concretos submetidos à sua apreciação, que cabe conhecer de tais questões.
Tal como ensina o Professor WANG ZHENMIN7 quando aborda o regime de controlo de constitucionalidade da RAEM, “De acordo com as normas das duas Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau, são dois os sujeitos dotados do poder de controlo da constitucionalidade na região administrativa especial, a Assembleia Popular Nacional e o respectivo Comité Permanente, por um lado, e os tribunais da região especial, por outro. Ambas as entidades assumem as funções de fiscalizar a aplicação nas regiões especiais das Leis Básicas das regiões administrativas especiais, são órgãos conjuntos de fiscalização da constitucionalidade das regiões administrativas especiais”.
Relativamente aos fundamentos de proceder ao controlo de constitucionalidade pelos tribunais de região administrativa especial, o mesmo autor considera que “Dispõe o artigo 80.º da Lei Básica (de Hong Kong) (artigo 82.º da Lei Básica de Macau): “Os tribunais das diversas instâncias da RAEHK são órgãos judiciais da RAEHK, exercendo o poder judicial da RAEHK.” Na “administração de justiça” deve incluir, antes de mais, a lei fundamental da região, ou seja, a Lei Básica. Todos os tribunais da região têm as funções de fiscalizar a aplicação da Lei Básica. Mais ainda, o artigo 158.º da Lei Básica (artigo 143.º da Lei Básica de Macau) atribui aos tribunais da Região Especial de Hong Kong o poder de interpretar as disposições da Lei Básica da região especial no julgamento das causas. Torna-se, assim, óbvia a realização autónoma do controlo de constitucionalidade pelos tribunais da região especial. ... Por isso, seja qual for a perspectiva, não há dúvida de que os tribunais da Região Especial de Hong Kong devem continuar a dotar do poder de fiscalização de constitucionalidade após o retorno de Hong Kong. Existem fundamentos suficientes na Lei Básica e fácticos para os tribunais da região especial exercer o poder de controlo de constitucionalidade” 8.
É o que também resulta do artigo 143.º da Lei Básica, nos termos de cujo 2.º parágrafo, os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau estão autorizados pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional a interpretar, por si próprios, no julgamento dos casos, as disposições da Lei Básica que estejam dentro dos limites da autonomia da Região, isto é, que não se refiram a matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central (como defesa e relações externas) ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a Região.
Tal como considera o Professor XIAO WEIYUN 9 ao tratar do poder de interpretação da Lei Básica de Macau, “Embora os tribunais da RAEM não tenham o poder de interpretar a Lei Básica de Macau, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional atribui especialmente aos tribunais da RAEM parte do poder de interpretação, isto é, podem interpretar, por si próprios, as disposições da Lei Básica de Macau relativas à autonomia da RAEM. Em relação a interpretação destas normas, já não intervém o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional no julgamento das causas pelos tribunais da RAEM... Assim determina a Lei Básica de Macau é porque, por um lado, a RAEM é dotada de alto grau de autonomia que deve ser respeitado pela Lei Básica de Macau .... Por outro lado, os tribunais da RAEM procedem necessariamente à aplicação das leis no julgamento das causas, incluindo a Lei Básica. Mais ainda, os tribunais da RAEM têm o poder de julgar em última instância, também necessitam de interpretar as leis. Sem a interpretação e aplicação das leis não é possível julgar as causas”.
Ora, se os tribunais, no julgamento dos casos, podem interpretar a Lei Básica, necessariamente que podem concluir que disposições legais ou regulamentares a contrariam e, nesse caso, têm de cumprir o disposto no artigo 11.º da Lei Básica: donde, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, sem prejuízo do disposto no artigo 143.º daquela Lei.
Como explica GOMES CANOTILHO 10 “em caso de conflito entre duas leis a aplicar a um caso concreto, o juiz deve preferir a lei superior (= lei constitucional) e rejeitar, desaplicando-a, a lei inferior”.
Do que ficou dito já se vê que este poder-dever dos tribunais não pode ser deixado à disponibilidade das partes. Tal poder tem de ser exercido oficiosamente, mesmo que nenhuma das partes do processo suscite a questão11, como sucede em todas as Ordens Jurídicas em que os juízes têm acesso directo à Constituição, o que acontece, actualmente, na maioria dos Sistemas Jurídicos.
5. Recurso contencioso e impugnação de normas para declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. O conhecimento incidental da ilegalidade dos regulamentos
Examinemos, agora, se o Acórdão recorrido violou o princípio da adequação formal — previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil — por não ter dado cumprimento ao disposto no artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (os artigos 88.º a 93.º deste diploma legal referem-se a um meio processual denominado impugnação de normas). Ou se foi violado o princípio dispositivo ou o princípio da estabilidade da instância, por se ter condenado em coisa diversa do pedido.
A invocação do artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e do artigo 36.º, alínea 9) da Lei de Bases da Organização Judiciária, bem como a chamada à colação do princípio da adequação formal — previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil — ou do princípio dispositivo e do princípio da estabilidade da instância, por, alegadamente, se ter condenado em coisa diversa do pedido, tem na sua base um equívoco de natureza processual.
Na verdade, o meio processual utilizado pelo recorrente foi o recurso contencioso de anulação — e bem — já que pediu a nulidade e a anulação de um acto administrativo. É o que decorre do disposto no artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Isto, porque é doutrina corrente que é o pedido deduzido pela parte que determina a forma de processo a utilizar.
O meio processual dos artigos 88.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso é outra coisa: visa a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Ou seja, tem por finalidade expurgar da Ordem Jurídica uma norma regulamentar ilegal.
Não foi isso que foi pedido nos autos, nem foi isso que o Acórdão recorrido decidiu. Este limitou-se a anular um acto administrativo por ter na sua base normas regulamentares ilegais. Mas não declarou a ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Mesmo que a tese do Acórdão recorrido prevalecesse, o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 continuaria a vigorar e poderia ser aplicado em outros casos pela Administração ou pelos tribunais. O julgado só obrigaria no caso concreto em apreciação.
O que o Acórdão recorrido fez foi conhecer, a título incidental, da legalidade de um Regulamento que o acto administrativo aplicou. Ora, “a título incidental qualquer tribunal poderá conhecer da legalidade dos regulamentos”12. Mas esta questão nunca foi controvertida. Veja-se, por exemplo, a lição de MARCELLO CAETANO13: “não é possível o recurso directo das disposições regulamentares, que constem de decreto14, mas pode-se recorrer do acto administrativo que as aplique, com fundamento em violação de lei resultante da contradição entre o regulamento e a lei a que deve obedecer”.
E o conhecimento incidental da ilegalidade de um regulamento, oficiosamente, pelo juiz, no recurso contencioso de acto administrativo, também nunca suscitou dúvidas, com fundamento no princípio da hierarquia das normas. F. ALVES CORREIA15 explica, seguindo a lição de AFONSO QUEIRÓ16, que o princípio da hierarquia das normas conduz não apenas à recusa de aplicação pelo tribunal — independentemente de ser ou não requerida — de uma norma regulamentar que contrarie a lei, mas também a desaplicação no caso sub judicio de uma norma regulamentar que viole outra norma regulamentar hierarquicamente superior.
Logo daqui se vê que não é de aceitar a invocação de violações dos princípios da adequação formal, dispositivo ou da estabilidade da instância.
Improcedem as questões suscitadas.
6. Violação de poderes de cognição do Tribunal
Antes de apreciar o mérito da causa resta saber se o Acórdão recorrido violou os seus poderes de cognição ao ter declarado ilegal todo o Regulamento n.º 17/2004, não cuidando de aquilatar da legalidade da norma concretamente ao caso em apreciação.
Mas nada obsta a que um tribunal considere que a totalidade de um regulamento é ilegal se entender — como foi o caso — que todas as normas estão viciadas de ilegalidade.
Na verdade, se o Tribunal considera que existe um vício de procedimento na aprovação de um regulamento ou se falece competência para a sua emissão ou se entende que a Lei Básica não permite a emissão de regulamentos sem haver lei ordinária que autorize a tal, todo o regulamento estará viciado e não apenas uma ou outra norma.
Não há violação de poderes de cognição, nem se invoca, aliás, qualquer norma que tenha sido violada.
Coisa diversa — mas que já se refere ao mérito da causa e que será conhecida, se for caso disso, no momento próprio — é poder haver uma norma no Regulamento em causa que legitime o acto administrativo, não obstante haver outras normas ilegais.
Improcede a questão suscitada, no plano em que o foi.
B) Questões de mérito da causa
1. A questão a apreciar
De acordo com o Acórdão recorrido, o poder regulamentar conferido ao Órgão Executivo pela alínea 5) do artigo 50.º da Lei Básica tem que ser exercido apenas no âmbito das leis, sendo que nenhuma lei da Assembleia Legislativa autorizou o Órgão Executivo a fazê-lo [o Acórdão recorrido deveria querer dizer Chefe do Executivo e não Órgão Executivo, visto que a norma mencionada refere-se à competência do Chefe do Executivo e, face à Lei Básica — artigo 61.º — o órgão executivo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) é o Governo, e o Chefe do Executivo é apenas o dirigente máximo do Governo da RAEM].
Mais entende o Acórdão recorrido, que o Chefe do Executivo apenas pode elaborar regulamentos independentes ou autónomos — no sentido de não carecerem de lei prévia habilitadora ou de lei de princípios emanada pela Assembleia Legislativa — com efeitos meramente internos, isto é, que versem sobre o próprio funcionamento do Governo (embora o Acórdão recorrido não seja inteiramente claro, parece que a expressão Governo está utilizada no sentido de órgãos e serviços da Administração Pública e não no sentido restrito de Governo como órgão da RAEM).
O fundamento para este tese, ainda segundo o Acórdão recorrido, é o de que, se o Governo pudesse emitir, através de regulamento administrativo, normas jurídicas gerais e abstractas com efeitos externos ou que importem sacrifício à sociedade civil, sem qualquer lei habilitadora, todo o sistema de separação de poderes, aflorado no artigo 2.º da Lei Básica, ficaria comprometido, já que o governo passaria a exercer o poder legislativo por via de regulamento administrativo.
A questão a examinar é, pois, a de saber se é indispensável que uma lei da Assembleia Legislativa confira competência ao Chefe do Executivo para emitir normas regulamentares sobre certa matéria, embora sem estatuir qualquer norma sobre o assunto, ou se, pelo contrário, o Chefe do Executivo tem o poder genérico de fixar por regulamento a disciplina inicial de qualquer relação social não abrangida por reserva de lei, isto é, fora das matérias em que a Lei Básica impõe lei (da Assembleia Legislativa), bem como daqueles em que não existindo reserva de lei, a matéria já está, no entanto, regulada por lei (precedência de lei).
Trata-se de examinar, fundamentalmente, a Lei Básica.
Porém, previamente, para melhor compreensão de todas as vertentes do problema, é importante e essencial, proceder à análise a partir do regime legislativo consagrado na Constituição da China, nomeadamente sob o ponto de vista da Constituição chinesa. Por um lado, a Lei Básica de Macau é uma lei “constitucional” elaborada com base no disposto no artigo 31.º da Constituição chinesa vigente, que regula em concreto e põe em prática o regime da Região Especial de Macau “um país, dois sistemas”, “administrar Macau por pessoas de Macau” e o alto grau de autonomia. Por isso, a Constituição da China em vigor é o fundamento legislativo da Lei Básica de Macau. Por outro lado, a feitura da Lei Básica resulta do mesmo órgão legislativo que elaborou a Constituição chinesa — a Assembleia Popular Nacional, constituindo, no âmbito de tipificação de actos normativos da China, uma lei constitucional e fundamental aplicável a todo o território nacional. Assim, em muitos aspectos está sob influência da doutrina do Direito Constitucional da China. Por outro lado, muitos membros da parte do Interior da China da Comissão da Lei Básica que se responsabilizaram pela feitura da Lei Básica de Macau tinham participado na redacção e elaboração da Constituição da China em vigor. O pensamento da teoria do Direito Constitucional da China destes juristas reflecte-se necessariamente tanto na Constituição chinesa vigente como na Lei Básica de Macau. Finalmente, veremos mais adiante que, à semelhança com disposições da Lei Básica de Macau, que determinam que o poder legislativo do Estado é exercido pela Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente, a Constituição chinesa atribui igualmente o poder de elaborar regulamentos administrativos ao Governo Popular Central.
Por outro lado, já que a Lei Básica se inscreveu em determinado sistema jurídico, iremos analisar a questão da possibilidade da existência de regulamentos, com as características indicadas, no direito de Portugal e de Macau — até 19 de Dezembro de 1999 — e com recurso a outros ordenamentos jurídicos, quando para tal se mostrar necessário.
O exame do direito português impõe-se não só pelo facto de o Direito do Território de Macau, enquanto sob administração portuguesa, se basear no primeiro, mas também porque o Acórdão recorrido, embora sem o mencionar, parece ter seguido uma das correntes doutrinais actuais do direito português sobre a questão em apreço.
Para o estudo do Direito de Macau terá especial relevância o Estatuto Orgânico de 1976, aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, vigente em 1999, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 53/79, de 14 de Setembro, 13/90, de 10 de Maio e 23-A/96, de 29 de Julho.
Examinaremos o Direito português à luz das Constituições de 1933 e de 1976, esta ainda vigente actualmente.
No que concerne ao direito constitucional chinês debruçar-nos-emos sobre as Constituições de 1954, 1975, 1978 e 1982, esta ainda vigente actualmente.
2. O Regulamento administrativo na Constituição chinesa
2.1. O Conceito de regulamento administrativo
Pela primeira vez, no artigo 89.º da Constituição da China vigente (Constituição de 1982), se prescreve expressamente que compete ao Conselho de Estado adoptar medidas administrativas, fazer regulamentos administrativos, emitir decisões e ordens, em conformidade com a Constituição e a lei. Então, para saber o que se tratam de regulamentos administrativos, a construção doutrinária parte sobretudo da perspectiva de normação administrativa. A sua definição (que nos parece) mais autorizada é a seguinte: “Regulamento administrativo é um diploma normativo sobre a gestão administrativa, elaborado e aprovado de acordo com a competência e procedimento legais pelo Governo Popular Central — o Conselho de Estado, órgão administrativo máximo do país, com base na Constituição e leis ou decisão de delegação do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional”17.
“O regulamento administrativo é o conjunto das diversas espécies de diplomas normativos de matérias como política, economia, educação, tecnologia científica, cultura e assuntos exteriores, elaborado pelo Conselho de Estado, com o objectivo de dirigir e gerir todas as tarefas administrativas do Estado, em conformidade com a Constituição e leis, de acordo com o procedimento determinado pelo regulamento administrativo”18.
“É um diploma normativo com força obrigatória geral, elaborado pelo Conselho de Estado, com base na Constituição ou delegação feita na lei orgânica, no âmbito das suas funções e constitui fundamento do poder a que todos os órgãos administrativos têm de obedecer e executar”19.
É de salientar, entretanto, que o regulamento administrativo não é uma forma exteriorizada em concreto de diplomas normativos do Interior da China, mas antes a designação genérica de toda uma série de diplomas normativos, como estatutos, regulamentos e regras, elaborados e aprovados pelo Conselho de Estado.
2.2. A natureza do regulamento administrativo
Segundo a Constituição chinesa e a doutrina de legislação, o regulamento administrativo é o resultado do exercício do poder de normação administrativa pelo Governo Popular Central, isto é, pelo Conselho de Estado. Tal poder é parte integrante do poder legislativo do Estado. “Normação administrativa é uma actividade do órgão administrativo dotado do poder normativo de elaborar diplomas normativos nos termos de lei” 20.
Por outro lado, o regulamento administrativo é uma das fontes de direito da China, tratando-se de uma forma exteriorizada de leis, diploma normativo com força obrigatória geral. “As formas de leis são lei, regulamento administrativo, regulamento local, estatuto de administração autónoma, estatuto avulso, portaria ministerial do Conselho de Estado, portaria governamental local” 21.
Sobre a mencionada natureza de fonte de direito do regulamento administrativo, LI BUYUN e WANG YONGQING, com o mesmo ponto de vista, afirmam mais concretamente22: segundo a Constituição chinesa e as disposições das respectivas leis, “na lei inclui a Constituição e as leis fundamentais aprovadas pela Assembleia Popular Nacional, as leis aprovadas pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, os regulamentos administrativos feitos pelo Conselho de Estado, as portarias ministeriais feitas pelos ministérios e comissões (incluindo os departamentos directamente dependentes) do Conselho de Estado ...”.
2.3. O regime de legislação estabelecido pela Constituição chinesa e os regulamentos administrativos
Houve quatro Constituições desde a implantação da República Popular da China até agora, são a Constituição de 1954, a Constituição de 1975, a Constituição de 1978 e a Constituição vigente de 1982. Através da análise da progressão dos órgãos legislativos e do poder legislativo nas referidas Constituições, constatamos que o regulamento administrativo, como uma das fontes de direito com força obrigatória geral e manifestação do exercício do poder normativo, aparece no meio do desenvolvimento do regime legislativo consagrado nas Constituições chinesas.
2.3.1. A Constituição de 1954
Após a implantação da República Popular da China, na primeira reunião da primeira legislatura da Assembleia Popular Nacional de 20 de Setembro de 1954, foi aprovada a primeira Constituição da República Popular da China, que foi promulgada e entrou em vigor no mesmo dia. Dispunha expressamente o artigo 22.º desta Constituição que a Assembleia Popular Nacional era o único órgão que exercia o poder legislativo do Estado, a que competia alterar a Constituição, elaborar leis e fiscalizar a aplicação da Constituição (artigo 27.º). Por sua vez, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional tinha competência para interpretar leis, elaborar decretos e revogar as deliberações e ordens do Conselho de Estado contrárias à Constituição, leis e decretos (artigo 31.º). Incumbia apenas ao Conselho de Estado determinar as providências administrativas, publicar as deliberações e ordens, de acordo com a Constituição, leis e decretos, e apreciar a execução das referidas deliberações e ordens (artigo 49.º). Na vigência desta Constituição, era manifesto que o Conselho de Estado, como o Governo Popular Central e órgão de Administração máximo do país, tinha apenas o poder de determinar as providências administrativas, tomar as deliberações e ordens, sendo meramente a entidade de execução do órgão máximo do poder do Estado (artigo 47.º), não tinha o poder de elaborar regulamento administrativo, e muito menos como órgão legislativo.
2.3.2. As Constituições de 1975 e de 1978
As Constituições de 1975 e de 1978 eram leis fundamentais feitas num período histórico particular. Embora não houvesse grande alteração no sistema legislativo estatuído pela Constituição de 54, é de atender que foi aprovada na segunda reunião da primeira legislatura da Assembleia Popular Nacional a “Deliberação sobre a Delegação no Comité Permanente do Poder de Elaborar Leis Avulsas”. Segundo a qual, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional ficou autorizada a “elaborar oportunamente certas leis, ou seja, as leis avulsas, segundo o espírito da Constituição e de acordo com as necessidades reais,” no período em que a Assembleia Popular Nacional não se encontrava reunida. Tal disposição conferia, na realidade, o poder legislativo ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional23. Assim, a Constituição de 1975 prescrevia apenas que a Assembleia Popular Nacional tinha a competência para alterar a Constituição, fazer leis (artigo 17.º da Constituição de 75), sem mais determinar que aquela fosse o único órgão que exercia o poder legislativo do Estado. No entanto, tal Constituição também não dispunha expressamente que o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional era dotado do poder legislativo, mantendo, por sua vez, as respectivas disposições da Constituição de 54, isto é, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional tinha o poder de interpretar leis, elaborar decretos (artigo 18.º). O Conselho de Estado, ou seja, o Governo Popular Central, tinha apenas, tal como dispunha a Constituição de 54, competência de determinar as providências administrativas, tomar as deliberações e ordens, de acordo com a Constituição, leis e decretos (artigo 20.º), sem poder para elaborar regulamentos administrativos.
Na nova Constituição aprovada em 5 de Março de 1978, foi mantido basicamente o regime legislativo concebido no Constituição de 75, sem conferir, do mesmo modo, o poder de elaborar regulamentos administrativos ao Governo Popular Central, ou seja, ao Conselho de Estado.
2.3.3. A Constituição de 1982
Em 4 de Dezembro de 1982 foi aprovada na quinta reunião da quinta legislatura da Assembleia Popular Nacional a “Constituição da República Popular da China” ainda em vigor, que é vulgarmente designada por Constituição de 82. Esta é uma nova Constituição elaborada depois de terminar os dez anos da Revolução Cultural e da decisão de adoptar a política de abertura ao exterior. Resumidas as experiências de aplicação das três Constituições anteriores e tendo em conta a necessidade de desenvolvimento político, económico e cultural, fruto da execução da política de abertura ao exterior do Estado, foram fixadas as seguintes disposições novas do regime legislativo do Estado:
A Assembleia Popular Nacional e o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional exercem o poder legislativo do Estado”.
Compete à Assembleia Popular Nacional:
1. Rever a Constituição;
2. Vigiar pelo cumprimento da Constituição;
3. Aprovar e alterar as leis fundamentais em matéria penal, civil, de órgãos do Estado e de outros assuntos;”.
Compete ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional:
1. Interpretar a Constituição e vigiar pelo seu cumprimento;
2. Aprovar e alterar as leis com excepção das que devem ser aprovadas pela Assembleia Popular Nacional;
3. Aprovar, quando a Assembleia Popular Nacional não esteja em sessão, aditamentos parciais e alterações a leis aprovadas pela Assembleia Popular Nacional, desde que não infrinjam os princípios fundamentais das mesmas leis;
4. Interpretar as leis;
...
7. Revogar os regulamentos administrativos, decisões e ordens do Conselho de Estado que infrinjam a Constituição ou as leis;
8. Revogar os regulamentos e deliberações locais dos órgãos do Estado das províncias, regiões autónomas e municípios dependentes directamente do Governo Popular Central que infrinjam a Constituição, as leis e regulamentos administrativos;”.
Compete ao Conselho de Estado:
1. Determinar as providências administrativas, fazer regulamentos administrativos (sublinhado nosso), tomar decisões e ordens;
...
13. Alterar ou revogar as ordens, directivas e regulamentos (sublinhado nosso) inadequados emanados dos ministérios ou comissões;”.
Os ministérios e as comissões emitem ordens, directivas e regulamentos no âmbito das respectivas competências, de harmonia com as leis e os regulamentos, decisões, ordens do Conselho de Estado”.
As Assembleias Populares das províncias e dos municípios dependentes directamente do Governo Popular Central e os seus comités permanentes podem aprovar regulamentos locais (sublinhado nosso), com a condição de não contrariar a Constituição, as leis e os regulamentos administrativos e proceder à comunicação ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de registo”.
As Assembleias Populares das regiões nacionais autónomas têm competência para fazer estatutos de administração autónoma e estatutos avulsos (sublinhado nosso) à luz das especialidades políticas, económicas e culturais das nacionalidades das respectivas regiões. Os estatutos de administração autónoma e estatutos avulsos das regiões autónomas entram em vigor depois de aprovação pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional. Os estatutos de administração autónoma e estatutos avulsos das prefeituras e distritos autónomos entram em vigor depois de aprovação pelo Comité Permanente da Assembleia Popular de províncias ou regiões autónomas e da comunicação ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de registo”.
Nos termos das referidas normas constitucionais, a Constituição de 82 vigente estabeleceu as seguintes novas regras para o regime legislativo de todo o País:
1. Pela primeira vez se define claramente que tanto a Assembleia Popular Nacional como o seu Comité Permanente são órgãos legislativos do Estado, exercendo em conjunto o poder legislativo do país;
2. Pela primeira vez são introduzidos na Constituição dois diplomas normativos, os regulamentos administrativos e as portarias;
3. Atribui o poder de elaborar regulamentos administrativos e portarias respectivamente ao Governo Popular Central — Conselho de Estado e os seus ministérios e comissões;
4. Pela primeira vez se regula na Constituição os poderes das Assembleias Populares das províncias e dos municípios dependentes directamente do Governo Popular Central e os seus comités permanentes de aprovar regulamentos locais e das Assembleias Populares das regiões nacionais autónomas de fazer estatutos de administração autónoma e estatutos avulsos;
5. Estabelece algumas normas de princípio na divisão do poder legislativo entre a Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente: compete àquela aprovar e alterar as leis fundamentais em matéria penal, civil, de órgãos do Estado e de outros assuntos, incluindo a criação de região administrativa especial e a fixação do seu regime, compete ao último, por sua vez, aprovar e alterar as leis com excepção das leis fundamentais aprovadas e alteradas pela primeira.
Em relação a este regime legislativo, a doutrina maioritária considera que se trata de um sistema legislativo com diferentes níveis. Os poderes legislativos do Estado e locais são exercidos por entidades diferentes. “Nos termos da Constituição, a Lei Orgânica da Assembleia Popular Nacional, a Lei Orgânica do Conselho de Estado e as Leis Orgânicas locais e a Lei de Administração Autónoma das Regiões Nacionais, no nosso sistema legislativo, o poder legislativo do Estado é exercido pela Assembleia Popular Nacional, órgão de poder supremo do Estado, e o seu Comité Permanente. Além disso, há ainda actividades normativas de diferentes níveis: primeiro, a actividade de aprovar regulamentos administrativos pelo Conselho de Estado, órgão administrativo máximo do Estado; segundo, a actividade de aprovar regulamentos locais pelas Assembleias Populares de províncias, regiões autónomas, municípios dependentes directamente do Governo Popular Central e as capitais provinciais e os municípios maiores e os respectivos Comités Permanentes; terceiro, a elaboração de estatutos de administração autónoma e estatutos avulsos pelas zonas autónomas nacionais. As actividades das zonas económicas especiais, como Shenzhen e Xiamen de aprovar regulamentos ao abrigo das delegações da Assembleia Popular Nacional. Além disso, há ainda as actividades de aprovar portarias ministeriais pelos diversos serviços do Conselho de Estado e as de aprovar portarias governamentais pelos Governos Populares de províncias, regiões autónomas, municípios dependentes directamente do Governo Popular Central e capitais provinciais e municípios maiores”24.
Assim, “os sujeitos de fazer leis são a Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente, o Conselho de Estado e os seus serviços e entidades directamente dependentes, os municípios de categoria provincial e maiores, as Assembleias Populares das prefeituras e distritos autónomos e os seus Comités Permanentes, os Governos Populares de municípios de categoria provincial e maiores” 25.
Por meio do disposto nos arts. 89.º, 90.º, 100.º e 116.º da Constituição de 82, é evidente que o regime legislativo da China apresenta uma diversidade de sujeitos legislativos e de formas exteriorizadas de leis, com a tendência para tornar os níveis legislativos mais complexos. De facto, “tem existido divergência entre autores nacionais em considerar o sistema legislativo do nosso país como sistema legislativo de dois níveis ou de vários níveis. Mas nunca existe grande divergência sobre a integração de órgãos administrativos nos sujeitos legislativos. Reconhece-se, ainda, que a Constituição confere a órgãos administrativos poder normativo inerente (sublinhado nosso). Em termos gerais, divide-se em dois grupos os sujeitos legislativos do país: os órgãos legislativos centrais e os órgãos legislativos locais. Entre os órgãos legislativos centrais, além da Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente, os restantes são sujeitos legislativos administrativos: o Conselho de Estado e os numerosos ministérios e comissões do Conselho de Estado e as entidades directamente dependentes. São órgãos legislativos locais as Assembleias Populares e os seus Comités Permanentes de categoria provincial, das capitais provinciais, dos municípios maiores aprovados pelo Conselho de Estado e dos municípios de zona económica especial, todos da ordem de Assembleia Popular, e os órgãos legislativos da ordem governamental são os Governos Populares de categoria correspondente às referidas Assembleias Populares”26.
2.4. O sujeito elaborador de regulamento administrativo e a sua forma exteriorizada
Tal como foi referido, segundo o artigo 89.º, alínea 1) da Constituição de 82, compete ao Conselho de Estado aprovar regulamentos administrativos nos termos da Constituição e das leis. Portanto, não se suscita dúvidas que o Conselho de Estado, isto é, o Governo Popular Central, órgão administrativo máximo do Estado, é o sujeito que elabora regulamentos administrativos. Por outra palavra, só o Conselho de Estado tem competência para aprovar regulamentos administrativos.
Por outro lado, também foi referido que o regulamento administrativo não é uma forma concreta de diplomas normativos do Interior da China, mas antes a designação genérica de todos os normativos em matéria de gestão administrativa elaborados e aprovados pelo Conselho de Estado. As principais formas exteriorizadas são: estatuto, regulamento e regra, etc. É manifestamente diferente do “regulamento administrativo” que o artigo 3.º, alínea 2) da Lei n.º 3/1999 da RAEM designa directamente para os diplomas normativos aprovados pelo Chefe do Executivo no uso da competência prevista no artigo 50.º, alínea 5) da Lei Básica da Região Especial.
2.5. A relação entre as leis aprovadas pela Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente e os regulamentos administrativos aprovados pelo Conselho de Estado
2.5.1. O princípio de prevalência da lei
É consabido que a Assembleia Popular Nacional é o órgão de poder supremo do Estado. O seu Comité Permanente é o seu órgão permanente (artigo 57.º da Constituição de 82). Ambos são órgãos legislativos do Estado, exercendo o poder legislativo do país (artigo 58.º da Constituição de 82). As leis aprovadas por estas duas entidades têm eficácia em todo o território nacional e com força vinculativa para todas as entidades no interior do País. Por isso, “No sistema legislativo com diversos níveis do nosso país, o poder legislativo da Assembleia Popular Nacional e do seu Comité Permanente toma a posição de topo e de núcleo. Os diplomas normativos elaborados por qualquer outra entidade não podem contrariar a Constituição nem as leis, ... os regulamentos administrativos não podem infringir a Constituição e as leis, os regulamentos locais não podem contrariar a Constituição, as leis e os regulamentos administrativos, os estatutos de administração autónoma e os estatutos avulsos não podem estabelecer disposições de adaptação das normas da Constituição e das leis de administração autónoma de zonas nacionais, não podendo contrariar os princípios fundamentais das leis e dos regulamentos administrativos. A posição de topo e nuclear do poder legislativo da Assembleia Popular Nacional e do seu Comité Permanente exige que quaisquer poderes legislativos inferiores ao poder legislativo do Estado devem obedecer a este, tomando-o como critério máximo”27.
Portanto, não se duvida da prevalência da lei sobre o regulamento administrativo. “Concretamente, o princípio de primazia (precedência) da lei comporta os seguintes dois significados: 1. O nível de validade da lei é superior ao da normação administrativa: A lei é o diploma normativo aprovado pela Assembleia Popular Nacional. A normação administrativa é a actividade do órgão administrativo de elaborar regulamentos administrativos e portarias administrativas. O nível da validade da lei formal ser superior à legislação administrativa significa que, no nosso sistema de leis administrativas, as leis aprovadas pela Assembleia Popular Nacional têm a posição e validade superiores a regulamentos administrativos e portarias administrativas” 28.
“Para os órgãos administrativos dotados do poder de normação administrativa, a prevalência da lei tem os seguintes sentidos: 1. Havendo disposições legais, os regulamentos administrativos e as portarias administrativas não podem contrariar as leis, prevalecem estas no caso de desconformidade. As leis são superiores aos regulamentos administrativos e às portarias” 29.
“No nosso país, a Assembleia Popular Nacional e o seu Comité Permanente tem poder para aprovar Constituição e leis, sendo o órgão legislativo de nível mais elevado, com o mais alto nível de validade jurídica. O Conselho de Estado tem poder para aprovar regulamentos administrativos. É órgão executivo da Assembleia Popular Nacional e é órgão legislativo de segundo nível que situa logo a seguir à Assembleia Popular Nacional e ao seu Comité Permanente. O regulamento administrativo representa correlativamente a actividade legislativa de segundo nível” 30.
O referido princípio de prevalência da lei é expressamente consagrado nos artigos 67.º, al. 7) da Constituição de 82 e 79.º e 88.º da Lei de Legislação e é posta em prática pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional.
2.5.2. O princípio de reserva da lei
Segundo a divisão do poder legislativo determinada pela Constituição, a reserva da lei significa que a Constituição manda que certas relações sociais, dado a sua natureza ou importância, sejam obrigatoriamente reguladas pelo órgão legislativo através da lei como forma de exteriorização de normas, sem possibilidade de serem reguladas por outras formas de exteriorização de normas, pelos outros órgãos, por exemplo os administrativos. Assim, a reserva da lei toma o sentido de, “no âmbito da ordem jurídica do Estado, certa matéria ter de ser regulada pela lei, cuja feitura não pode ser realizada por outros órgãos estatais, nomeadamente pelos órgãos administrativos”31.
Na teoria de legislação, normalmente distingue-se a reserva da lei em reserva relativa e absoluta. A reserva relativa significa que “os órgãos administrativos não podem legislar sobre as matérias que devem ser reguladas pela lei, salvo a autorização especial feita pela lei”.32 A reserva absoluta implica que “certas matérias só podem ser reguladas pela lei, sem possibilidade de autorizar, por meio de lei de delegação, os órgãos administrativos a legislar”33.
Com base na Constituição de 82 acima mencionada, compete à Assembleia Popular Nacional não apenas rever a Constituição, mas ainda aprovar e alterar as leis fundamentais em matéria penal, civil, de órgãos do Estado e de outros assuntos, bem como decidir a criação de região administrativa especial e fixar o seu regime (artigo 62.º da Constituição). Ao Comité Permanente compete aprovar e alterar as leis com excepção das leis que devem ser aprovadas e alteradas pela Assembleia Popular Nacional (artigo 67.º da Constituição).
As leis fundamentais acima referidas “podem ser compreendidas nos seguintes dois aspectos: Por um lado, do ponto de vista da sua natureza, “as leis fundamentais” regulam e prescrevem certo tipo de relações sociais, com significado normativo global, a longo prazo, genérico e essencial na vida do Estado e da sociedade. Por outro lado, a partir da matéria regulada, os assuntos tratados pelas “leis fundamentais” devem ser as relações de direitos e deveres fundamentais de cidadãos, as relações básicas de certa área da vida económica e social do Estado, o regime fundamental de todos os âmbitos da vida política do Estado, os assuntos relevantes relacionados com a soberania do Estado e a unidade do mercado nacional, e outros assuntos essenciais e relevantes”34.
Quanto a outras matérias que devem ser reguladas pela lei, a maior parte delas é objecto das leis do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional. No entanto, a Assembleia Popular Nacional pode igualmente exercer o poder legislativo se entender necessário. Totalizam em 45 os assuntos que a Constituição determina expressamente que devem ser reguladas pela lei, utilizando as expressões como “regulado pela lei”, “regulado através da lei”, “segundo o disposto na lei”, “segunda a lei” e “no âmbito determinado pela lei”, etc.35. Relativamente aos assuntos acima referidos que a Constituição prescreve expressamente que devem ser regulados pela lei, os órgãos administrativos do Estado não podem legislar através de regulamento administrativo por iniciativa própria, sob pena de infringir o poder legislativo da Assembleia Popular Nacional e do seu Comité Permanente.
Além dos assuntos que a Constituição reserva expressamente à Assembleia Popular Nacional e ao seu Comité Permanente para legislar por meio de aprovação da lei, a doutrina entende unanimemente que, perante as disposições expressas da Constituição (artigo 57.º), a Assembleia Popular Nacional é o órgão de poder supremo do Estado e o Comité Permanente é o seu órgão permanente. Ambos são órgãos que exercem o poder legislativo do Estado (artigo 58.º da Constituição). Assim sendo, o poder legislativo destes dois órgãos não é limitado. Isto é, podem exercer o poder legislativo em relação a qualquer assunto desde que entendam conveniente.
2.5.3. Âmbito de regulação do regulamento administrativo
Sendo o poder de fazer regulamento administrativo do Conselho de Estado o poder normativo administrativo conferido pela Constituição, a doutrina maioritária considera como um poder inerente e próprio. Por isso, toda a matéria ligada ao âmbito das suas funções de gestão administrativa (artigo 89.º da Constituição) e com autorização pela lei específica ou ser necessário à execução da lei concreta, pode ser objecto de regulação por regulamento administrativo. Não pode, contudo, regular por regulamento administrativo os assuntos que a Constituição reserva expressamente à Assembleia Popular Nacional e ao seu Comité Permanente, e os que já foram regulados por estes através das leis.
Na realidade, este entendimento doutrinário foi confirmado pelo artigo 56.º da Lei de Legislação aprovada posteriormente. “Se houver regulação por norma de categoria superior, o órgão administrativo que tem o poder de normação administrativa, deve legislar em termos de execução com base na norma de categoria superior. Se não houver regulação por esta norma, o órgão administrativo pode legislar em termos constitutivos no âmbito das suas funções fixadas pela Constituição e lei orgânica”36.
“Há duas partes na competência de fazer regulamento administrativo do Conselho de Estado: Uma é o poder de aprovar regulamento administrativo que o Conselho de Estado tem segundo as disposições da Constituição. Outra é o poder de aprovar regulamento administrativo do Conselho de Estado derivado da delegação da Assembleia Popular Nacional e do seu Comité Permanente. Entre as quais, a primeira parte do poder legislativo é instituído directamente a fim de executar a Constituição e as leis. Por isso, o exercício desta parte do poder normativo deve ter por fundamento a Constituição e as leis. Não se pode estabelecer disposições de regulamento administrativo contrárias às das leis avulsas. A segunda parte do poder normativo, embora não tenha por pressuposto as leis avulsas aprovadas pelo Estado, deve ter o seu fundamento nas disposições da Constituição. Tem ainda, no âmbito de hierarquia e validade, a natureza de subordinação”.37
“Nas normas constitucionais e legais em que se prescrevem que os sujeitos legislativos podem exercer as funções em relação a certos assuntos concretos está implícito o gozo de competência legislativa pelos órgãos legislativos sobre os mesmos assuntos. Por exemplo, nas normas como o artigo 89.º da Constituição chinesa que estatui as funções do Conselho de Estado de “dirigir e gerir a política económica e o desenvolvimento urbano e rural” e “dirigir e gerir as políticas educativa, científica, cultural, de saúde pública, desportiva e de planeamento familiar», integra tacitamente o poder de fazer regulamentos administrativos na gestão dos referidos assuntos entre as competências do Conselho de Estado”38.
“O limite do poder normativo do Conselho de Estado é definido sobretudo pelo âmbito das competências do Conselho de Estado estabelecido na Constituição e noutras leis constitucionais. No artigo 89.º da Constituição define-se as 18 competências do Conselho de Estado e na Lei Orgânica Local prescreve-se que o Conselho de Estado exerce certo poder de fiscalização legislativa. No âmbito destas competências, o Conselho de Estado pode regular normativamente, se entender necessário, sobre estes assuntos por meio de formas como a aprovação de regulamentos administrativos”39.
2.5.4. Regulamento administrativo executivo e regulamento administrativo independente
Os regulamentos administrativos aprovados pelo Conselho de Estado podem ser classificados, segundo as suas funções, em regulamento administrativo executivo e regulamento administrativo independente. Aquele é o resultado do exercício do poder normativo executivo, este do poder normativo constitutivo.
“A normação executiva é uma actividade normativa de sujeito administrativo desenvolvida com o objectivo de executar ou aplicar determinadas leis e normas ou disposições constantes de diplomas normativos de sujeito administrativo superior. A normação executiva pode ser realizada oficiosamente ou por delegação, mas sempre sem possibilidade de ampliar ou restringir o conteúdo das leis, normas ou diplomas normativos de hierarquia superior. Os regulamentos administrativos e portarias elaborados por meio de normação executiva são normalmente designados por “estatuto executivo”, “regulamento executivo” ou “regraexecutiva”. Não podem subsistir autonomamente, da mesma maneira, no caso de serem revogados a lei, as normas ou diplomas normativos superiores, objecto de execução.
A normação constitutiva é uma actividade normativa de sujeito administrativo desenvolvida no sentido de integrar as lacunas de leis e normas ou adaptá-las no sentido de realizar as funções administrativas. A actividade normativa constitutiva de integração de lacunas de leis e normas consiste em o sujeito administrativo legislar na ausência de correlativas disposições de leis e normas, exercendo o poder normativo consagrado na Constituição e lei orgânica. É a chamada normação auto-determinada” 40.
40 MA HUAIDE, 行政..., p. 199.
Normalmente é designado como regulamento administrativo executivo o regulamento administrativo aprovado pelo Conselho de Estado na aplicação concreta de uma determinada lei. São chamados regulamento administrativo independente ou regulamento administrativo constitutivo, na falta de disposição da lei, os regulamentos administrativos aprovados no exercício das funções previstas na Constituição, tais como as competências de gestão administrativa previstas no artigo 89.º, e os aprovados com delegação especial da Assembleia Popular Nacional ou do seu Comité Permanente. Os regulamentos administrativos executivos não podem constituir novos direitos ou deveres, antes podem os regulamentos administrativos constitutivos.
Em conclusão:
Segundo a Constituição da República Popular da China de 82 em vigor e o sistema legislativo consagrado na Constituição:
3. O regulamento nos ordenamentos jurídicos português e do Território de Macau.
3.1. Noção de regulamento
Os regulamentos são normas jurídicas dimanadas de órgãos da Administração no exercício da função administrativa.41 Neste conceito quase todos os autores estão de acordo, podendo dizer-se que constitui um mínimo denominador comum.
Por vezes, alguns autores adicionam elementos ao conceito, consoante a perspectiva que adoptam do instituto. Alguns 42 fazem notar que não só os órgãos da Administração pública podem emitir normas regulamentares, mas também outras entidades públicas não integradas na Administração mas que executam, por vezes, tarefas materialmente administrativas — como o Parlamento, por exemplo, quando aprova regras sobre o acesso dos cidadãos ao Plenário da Assembleia — ou até certas entidades privadas, como as federações desportivas.
Os regulamentos são normas jurídicas. Isto quer dizer que devem ser dotados das características da generalidade e da abstracção. A generalidade, como característica da norma jurídica, consiste em a norma não se dirigir a destinatários determinados, mas a uma generalidade mais um menos ampla de pessoas. Abstracto é o preceito que disciplina ou regula um número indeterminado de casos, uma categoria mais ou menos ampla de situações, e não casos, situações ou hipóteses determinadas, concreta ou particularmente visadas43.
Os “regulamentos não constituem uma manifestação da função legislativa, antes se revelam como expressões normativas da função administrativa”44.
3.2. Fundamentos do poder regulamentar
Comecemos pelo fundamento histórico.
Com a queda do Antigo Regime e nascimento do Estado Liberal e do Estado de Direito Constitucional, a aplicação prática do princípio da separação de poderes, tal como foi concebido pelos seus teorizadores, suscitou dificuldades práticas. Na verdade, logo se constatou que o poder legislativo não conseguia assegurar a produção normativa indispensável à vida concreta, pelo que se deixou “nas mãos do Poder Executivo não simplesmente a função executiva mas também uma larga parcela da função normativa, a qual, na pureza do princípio da adequação ou coincidência do esquema orgânico e do esquema material da divisão dos poderes, deveria ter sido integralmente atribuída ao Poder Legislativo”45. “Tal não sucedeu, todavia, por impossibilidade prática; e daí que logo nos anos imediatamente subsequentes à Revolução Francesa haja sido reconhecido por lei à Administração (e, sobretudo, na Constituição do Ano VIII) o poder de, dentro de certos limites, emanar certas regras jurídicas, ainda que secundárias ou de grau inferior ao das leis. Historicamente, portanto, o poder regulamentar resulta dessa impossibilidade prática de aplicação, na sua pureza, do princípio da separação dos poderes”46 47.
Quanto ao fundamento prático do poder regulamentar aduz-se que o Parlamento não tem os meios técnicos que lhe permitam editar normas com o acabamento necessário para a sua execução com segurança48, além de que o legislador está distanciado dos casos concretos da vida social, bem como a impossibilidade de previsão completa por parte do legislador, de modo a que tem de ser a Administração a intervir, num segundo momento, para preencher os espaços, intencional ou involuntariamente deixados em branco pela lei49.
AFONSO QUEIRÓ 50 dá ainda outra justificação: “Quanto aos regulamentos independentes, elaborados «para a boa execução das leis em geral», são eles especialmente compreensíveis nos sistemas constitucionais em que o Parlamento se caracterize por uma certa indolência no exercício da sua competência legislativa e o Executivo não disponha de competência legislativa concorrente”.
Enfim, o fundamento jurídico actual do poder regulamentar reside na Constituição e na lei, em homenagem ao princípio da legalidade.
Na verdade, no direito português e de Macau o fundamento do poder regulamentar, no sentido da sua existência, radica originariamente na Constituição. Mas o fundamento de cada regulamento concreto, pode ter a sua fonte na lei (no sentido de acto legislativo, abrangendo, portanto, a lei e o decreto-lei) 51 52.
3.3. Competência e forma dos regulamentos
No ordenamento jurídico português são competentes para emitir regulamentos o Governo da República, os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, os órgãos das autarquias locais, os governadores civis e os órgãos dos institutos públicos e das associações públicas.
No Direito de Macau, o Governador tinha competência regulamentar [artigo 16.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto Orgânico]. Também a tinham os secretários-adjuntos a quem o Governador tivesse delegado o poder regulamentar, nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico53.
53 AFONSO QUEIRÓ, Teoria..., p. 16.
A lei atribuía competência regulamentar a outras entidades, como as autarquias locais e os institutos públicos.
No Direito português, os regulamentos da competência do Governo assumem a forma de decreto regulamentar, portaria e despacho normativo, cabendo a forma de instruções e de circulares aos regulamentos internos.
Os regulamentos do Governador de Macau assumiam a forma de portaria e de despachos normativos (artigo 15.º, n.º 2 do Estatuto Orgânico).
3.4. Relações entre a lei e o regulamento
3.4.1. A competência legislativa do Parlamento e do Governo
No direito português e de Macau (sob a Administração portuguesa), a competência legislativa está distribuída entre a Assembleia e o Governo.
Na verdade, a partir da Revisão Constitucional de 1945, o Governo português passou a ter uma competência legislativa concorrente com a Assembleia Nacional — por meio do decreto-lei — sem embargo de a Constituição reservar algumas matérias que só podiam ser aprovadas por lei da Assembleia (artigos 93.º e 109.º, 2.º da Constituição de 1933, estes na versão da Revisão Constitucional aprovada pela Lei n.º 3/71, de 16 de Agosto). Mas na parte não objecto de reserva o decreto-lei tinha o mesmo valor e força hierárquica da lei da Assembleia, podendo modificá-la e revogá-la.
O sistema manteve-se com a Constituição de 1976 (artigos 164.º, 165.º e 198.º, na versão da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro).
Em Macau, também a competência legislativa estava distribuída entre a Assembleia Legislativa e o Governador. Nos termos do artigo 5.º do Estatuto Orgânico de Macau, “A função legislativa será exercida pela Assembleia Legislativa e pelo Governador”.
De acordo com o n.º 1 do artigo 13.º do Estatuto Orgânico, “A competência legislativa do Governador é exercida por meio de decretos-leis e abrange todas as matérias que não estejam reservadas aos órgãos de soberania da República ou à Assembleia Legislativa, sem prejuízo do disposto no artigo 31.º”.
O n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Orgânico estabelecia as matérias da exclusiva competência da Assembleia Legislativa (reserva absoluta) e o n.º 2 as matérias da exclusiva competência da Assembleia, mas que podiam ser objecto de autorização legislativa ao Governador (reserva relativa); o n.º 3 do mesmo artigo indicava as matérias em que a competência legislativa do Governador e da Assembleia Legislativa eram concorrenciais e, em que, portanto, a lei podia modificar e revogar o decreto-lei e vice-versa.
3.4.2. Matéria legal e regulamentar
Tem-se discutido se há matérias que, por natureza, tenham de ser objecto de lei ou se, em princípio, quaisquer matérias podem ser concretizadas normativamente por meio de lei ou de regulamento54.
Determinada teoria, do início do século XX, defendia que cabia à lei formular os princípios e ao regulamento coleccionar os pormenores.
Mas rapidamente se constatou que o critério da distinção é inviável, já que o conceito de pormenor é relativo.
Um segundo critério assentava na novidade da lei, que faltaria ao regulamento. Mas bem vistas as coisas, deixaria de fora os regulamentos independentes que estão previstos no ordenamento jurídico e que mesmo para a doutrina mais exigente se bastam com a lei de habilitação. Ora, estes não pressupõem nenhuma lei onde estariam formulados os princípios.
Um terceiro critério, assume que há identidade material da lei e do regulamento. Não há matérias que, a priori estejam reservadas à lei ou ao regulamento. A distinção entre os dois só pode ser feita no plano formal e orgânico.
Este sistema é o adoptado nos ordenamentos português e de Macau.
Tanto a lei como o regulamento constituem normas jurídicas, só diferindo da diversa posição dos órgãos de onde emanam e do diferente valor formal dos diplomas que as consubstanciam, de sorte que a lei pode revogar o regulamento, mas este não pode revogar a lei.
À “luz do direito positivo vigente, é lei todo o acto que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma forma de lei, ainda que o seu alcance seja estritamente individual e contenha disposições de carácter regulamentar; é regulamento todo o acto dimanado de um órgão com competência regulamentar e que revista a forma de regulamento, ainda que seja independente ou autónomo e, por conseguinte, inovador”55.
3.4.3. Reserva de lei. Precedência de lei
Não obstante o que fica dito, no direito português e no do Território de Macau vigora o princípio da reserva de lei, no sentido de reserva de competência legislativa da Assembleia. Ou seja, há matérias que estão reservadas à assembleia representativa.
Com se disse, Assembleia e Governo têm competência legislativa, ou seja, ambos aprovam leis, embora as leis do Governo tenham a designação de decreto-lei.
Face aos artigos 164.º e 165.º da Constituição de 1976 há matérias que só podem ser aprovadas por Lei da Assembleia da República, nalgumas das quais está totalmente interdita a possibilidade de o Governo aprovar decretos-leis, ainda que por autorização da Assembleia (reserva absoluta). Noutras matérias a reserva da Assembleia é relativa, o que significa que o Governo pode aprovar decretos-leis, com autorização da Assembleia.
O mesmo sistema vigorou em Macau até 19 de Dezembro de 1999. Em determinadas matérias havia reserva absoluta das leis da Assembleia. Noutras, a reserva era relativa. Nas restantes, a competência legislativa da Assembleia Legislativa e do Governador eram concorrentes (artigo 31.º do Estatuto Orgânico).
Nestas matérias de reserva das leis da Assembleia, portanto, não é reconhecido qualquer poder de normação originário ao Executivo.
Também é indiscutível a existência de um princípio da prevalência da lei: a lei tem superioridade e preferência relativamente aos regulamentos administrativos, tornando inválida a norma regulamentar que se lhe opuser. Ela resulta do artigo 266.º, n.º 2 da Constituição portuguesa, donde consta a subordinação directa da Administração à lei, mas também se baseia na unidade do Direito e na necessidade de assegurar a sua coerência intrínseca56. “O facto de as normas fazerem parte de uma unidade assegura que, não obstante disporem para uma hipótese em termos contraditórios, só uma delas possa conter a solução correcta e devida para ela (princípio da não contradição da ordem jurídica)57.
Claro está que aí onde se encontre uma reserva da Administração (reserva do Poder Executivo, limitadora do legislador e que este tem de respeitar) já se pode pôr em questão o princípio da prevalência da lei.58
Por fim, importa dizer que, sendo aceite que os regulamentos não podem, também, “contrariar os princípios gerais de direito administrativo, aos quais a doutrina reconhece valor hierárquico igual ao da lei (quando não tenham registo na Constituição)” 59 — a lei pode contrariá-los; o regulamento, não. A legalidade, como subordinação da administração à lei, é aqui entendida como bloco de legalidade ou como juridicidade60.
3.4.4. Regulamentos de execução e regulamentos independentes
3.4.4.1. Noção
Distinguem-se os regulamentos de execução dos regulamentos independentes.
Os regulamentos de execução visam regulamentar uma lei. Os regulamentos independentes são os restantes, são aqueles que não visam desenvolver ou pormenorizar uma lei.
Quanto aos regulamentos independentes discute-se se é indispensável que uma lei confira ao Governo competência para emitir normas regulamentares sobre certa matéria, embora sem estabelecer qualquer regulação normativa sobre a mesma ou se, “pelo contrário o Governo recebe da Constituição o poder genérico de fixar por regulamento a disciplina inicial de toda e qualquer relação social não abrangida”61 pela reserva de lei.
3.4.4.2. Regulamentos independentes na Constituição portuguesa de 1933
Na vigência da Constituição de 1933, a propósito do artigo 109.º, n.º 3, segundo o qual competia ao Governo «elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis», MARCELLO CAETANO62, com a sua autoridade indiscutível discorria:
“O n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição de 1933 diz que compete ao Governo «elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis». Deduzir-se-á daqui que o regulamento é uma regra destinada à execução de certa e determinada lei anterior, isto é, ao desenvolvimento dos seus preceitos basilares? Não nos parece. A própria letra do preceito impede tal asserção, pois teria de se concluir que também só se poderiam elaborar decretos não regulamentares quando o necessitasse a execução de certa lei, o que seria manifestamente incorrecto e contrário à prática nacional e geral. Quando a Constituição se refere à «boa execução das leis» quer referir-se àquela espécie de actividade do Estado que decorre na subordinação à ordem normativa estatuída pelas regras de essência superior a que chamamos leis no sentido formal. Numa palavra, o legislador constitucional quis certamente exprimir a ideia de que o regulamento, como o decreto simples, como as instruções, são formas de actividade administrativa, já que, conforme resulta do início do n.º 4.º do mesmo artigo 109.º, concebeu a administração como sendo, antes de mais, uma função executiva. A «boa execução das leis não é, pois, a execução de cada lei, mas a dinamização da ordem legislativa».
L. S. CABRAL DE MONCADA63 interpreta esta passagem como aceitando que podiam existir regulamentos independentes regulando ab initio determinada matéria, referindo a influência que a prática constitucional francesa a partir do final da 1.ª Grande Guerra exerceu no direito português.
3.4.4.3. Regulamentos independentes na Constituição portuguesa de 1976 (versão inicial)
Com a aprovação da Constituição de 1976 que, na redacção inicial [artigo 202.º, alínea c)], dispunha de útil que «Compete ao governo, no exercício de funções administrativas» «Fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis», a doutrina dividiu-se.
Alguns autores afirmaram a impossibilidade de regulamentos independentes como normação originária de determinada matéria.
Entre estes, GOMES CANOTILHO veio defender que a Constituição admite os regulamentos independentes, mas define estes como “aqueles em que a lei (existe sempre a vinculação positiva da administração) se limita a indicar a autoridade que poderá ou deverá emanar o regulamento e a matéria sobre que versa”64. E para afastar dúvidas, acrescentava que “A preferência ou primazia da lei sobre o regulamento tornar-se-ia um princípio puramente formal se em matérias importantes ainda não reguladas por lei o regulamento pudesse adiantar-se na disciplina normativa. E, na verdade, era isso que praticamente permitia a doutrina da vinculação negativa da administração à lei”65.
Ainda na vigência da versão inicial da Constituição, em anotação ao artigo 202.º, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA 66 sustentavam:
“III. Os «regulamentos necessários à boa execução das leis» (al. c) abrangem, apesar da letra do texto, não apenas os chamados regulamentos de execução mas também os regulamentos independentes.
Os primeiros são os regulamentos puramente executivos das leis (rectius: de uma lei em concreto); os segundos são aqueles em que a lei se limita a definir a competência objectiva (i. é, a matéria sobre que pode incidir o regulamento) e a competência subjectiva (i. é, a entidade competente para emitir o regulamento). Não pode haver regulamentos puramente independentes, isto é, sem qualquer referência à lei”.
Também ESTEVES DE OLIVEIRA 67 aponta no mesmo sentido considerando que “não são de admitir regulamentos, aí onde o Poder Legislativo não quis intervir ou se esqueceu de legislar”.
Inversamente, AFONSO QUEIRÓ 68 veio sustentar que na ausência de leis ou decretos-leis “exerce-se o poder próprio do Governo para editar regulamentos «para a execução das leis», conforme o disposto no artigo 202.º, c) da Constituição, latamente entendido”. O que se passa é “... nestes casos, o poder regulamentar-se exercer-se em virtude de um poder próprio do
Executivo. A subordinação à lei, a existir, é muito ténue e dificilmente apreensível. Em rigor, o que sucede é o poder regulamentar independente exercer-se no respeito das leis em domínios que o parlamento deixa livre. Só neste sentido se pode afirmar que ele se exerce «para a execução das leis»”69.
Também SÉRVULO CORREIA70 admitiu a possibilidade de os regulamentos do Governo se basearem na Constituição, sem necessidade de haver na sua base nenhuma lei ordinária.
3.4.4.4. Regulamentos independentes na Constituição portuguesa de 1976 (Revisão de 1982)
3.4.4.4.1. A tese negadora dos regulamentos independentes sem lei habilitadora prévia
Entretanto, em 1982, a Constituição portuguesa de 1976 foi revista pela Lei Constitucional n.º 1/82, tendo sido criadas duas normas no artigo 115.º, com a seguinte redacção:
“6. Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes.
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”.
Estas normas ainda se mantêm em vigor, constituindo, actualmente os n.os 7 e 8 do artigo 112.º.
Com esta redacção, explicitando os conceitos referentes aos regulamentos independentes, dir-se-ia que a Constituição, nesta Revisão Constitucional, veio consagrar a tese daqueles que, como GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA sustentavam que os regulamentos independentes são aqueles em que a lei se limita a definir a competência objectiva, isto é a matéria sobre que incide o regulamento e a competência subjectiva, ou seja, a entidade competente para emitir o regulamento.
Certamente por isso, na nova edição da sua Constituição Anotada, em anotação ao artigo 115.º, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA 71 escrevem:
“A conjugação dos n.º 6 e 7 torna claro que os regulamentos independentes a que se refere o n.º 6 são aqueles cuja lei habilitante se limita a definir a «competência subjectiva e objectiva para a sua emissão» (n.º 7), em que a lei é uma pura lei de reenvio ou de remissão para regulamento; aí a lei é uma pura norma de produção normativa.
Por isso, aqui não se dá qualquer abertura para os chamados regulamentos autónomos (também eles, por vezes, chamados «independentes»), no sentido de regulamentos fundados num pretenso poder originário conferido pela Constituição (cfr. artigo 202.º/c: «compete ao Governo fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis»), e referidos, não a uma lei em particular, mas à ordem jurídica em geral...
Também não tem nenhum sentido invocar como fundamento directo e autónomo de um pretenso poder regulamentar independente do Governo a norma do artigo 202.º/g da Constituição, que lhe confere o poder de «praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas»...
De resto, tendo o Governo entre nós poder legislativo originário, não se vê o que é que poderia justificar conferir-lhe um poder regulamentar à margem da lei”.
Também GOMES CANOTILHO na sua obra de referência já após a Revisão Constitucional de 1982, mantém o mesmo entendimento72.
Outros autores têm aderido a esta tese73 e a mesma foi sufragado pelos Acórdãos n.os 184/89, de 1.2.89, e 61/91, 13.3.91 do Tribunal Constitucional, respectivamente, no Diário da República, II Série de 9.3.89 e de 1.4.91.
Os argumentos principais a favor desta doutrina são os seguintes:
a) A letra dos actuais n.os 7 e 8 do artigo 112.º da Constituição, que exigiriam que qualquer regulamento independente indicasse a lei que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
A norma significaria que não existe exercício do poder regulamentar sem fundamento jurídico numa específica lei anterior.74
Tal lei não poderia ser a Constituição, já que a indicação constitucional seria demasiadamente indiferenciada pelo que toca à competência subjectiva75.
No que respeita à exigência da indicação de lei habilitadora, há quem aceite uma habilitação legal genérica do regulamento, sem necessidade de fundamento legal, caso por caso76.
b) A desnecessidade de o Governo aprovar regulamentos independentes com regulação originária, visto que dispõe de competência legislativa própria77.
Assim, tendo o Governo competência legislativa, quando tem de dispor por via normativa em primeira mão, deve fazê-lo sob a forma legislativa e não sob forma regulamentar. O contrário seria dar a possibilidade ao Governo de iludir certas exigências como, por exemplo, as decorrentes da susceptibilidade da fiscalização preventiva da constitucionalidade dos decretos-leis, não aplicáveis aos regulamentos78.
c) O princípio democrático não seria compatível com uma pura transferência da competência normativa genérica, mesmo infra legem para o Governo79.
Cabe aqui advertir que, mesmo para a tese que se tem vindo a descrever, o princípio da referência à lei habilitadora não se coloca relativamente aos regulamentos internos — regulamentos organizatórios da Administração, que se dirigem apenas aos órgãos, serviços e agentes administrativos, não produzindo efeitos no exterior da Administração80. Contudo, desde que afectem terceiros, devem ser considerados externos, com as consequências daí inerentes, como a sua impugnação contenciosa.
Tais regulamentos internos podem ser regulamentos de organização e de direcção (instruções e circulares). Quanto aos relativos às relações especiais de poder: militares, funcionários públicos, presos, utentes de certos serviços, como os alunos de estabelecimentos de ensino públicos, que tradicionalmente se entendia serem internos, actualmente já não é pacífico este entendimento81.
3.4.4.4.2. A tese que admite os regulamentos independentes sem lei habilitadora prévia
SÉRVULO CORREIA na sua importante dissertação de doutoramento82 continua a sustentar que podem existir regulamentos directamente baseados na Constituição.
Para tal, observa que o argumento tirado do artigo 115.º da Constituição não é decisivo, visto que se o n.º 6 (actual n.º 7 do artigo 112.º) se refere apenas aos regulamentos do Governo, já o n.º 7 (actual n.º 8 do artigo 112.º) se refere a todos os regulamentos do ordenamento jurídico83, pelo que entre estes há muitos que terão na sua base uma competência subjectiva e objectiva estabelecida em lei ordinária, não constitucional. E daí a referência do n.º 7 a estas competências.
Relativamente ao argumento da duplicação desnecessária (já que o Governo dispõe de competência legislativa normal, que não encontra paralelo noutros ordenamentos jurídicos europeus, que apenas a admitem, por via de regra, nos casos de urgência e no uso de autorização legislativa do parlamento), o referido autor afasta-o, invocando a forma mais expedita da elaboração dos decretos regulamentares relativamente ao procedimento legislativo84.
Contra este argumento, aduz-se, ainda, que se a Constituição cometeu ao Governo competências ao nível da função legislativa e se prevê, por outro lado, a existência de poderes normativos ao nível da função administrativa, sujeitando-os a regimes diferenciados, os mesmos não poderão ser tidos enquanto aplicáveis a competências indistintas. Deverão ser entendidos enquanto aspectos que exprimem uma diferente natureza dos poderes em presença85. Como refere MANUEL AFONSO VAZ86, “todo o regime jurídico procedimental e relacional do decreto-lei, frente ao decreto regulamentar, está dirigido à afirmação de uma intencionalidade normativa de natureza diferente”.
Por outro lado, o princípio democrático provaria demais e não funcionaria naqueles regimes não parlamentares — como o português — em que o governo recebe legitimidade não só do parlamento, mas também de um presidente eleito por sufrágio universal, perante o qual responda politicamente.
SÉRVULO CORREIA invoca também o artigo 202.º, alínea g) da Constituição [actual artigo 199.º, alínea g)] — relativo à competência administrativa do Governo — nos termos do qual compete ao Governo “praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas” para fundar um poder regulamentar originário.87
Adianta-se, ainda, que a admissibilidade dos regulamentos independentes seriam a única forma de a Administração prosseguir com eficiência e justeza os interesses públicos, sobretudo em áreas em que a dinâmica real se não compadece com os inevitáveis entraves do processo legislativo, como serão as áreas da administração económica e de prestações.88
O argumento seria reforçado em virtude da mencionada alínea — ao contrário da maioria das restantes do mesmo artigo — dispensar a referência do regulamento à lei, substituindo-a pela prossecução de certas finalidades: promoção do desenvolvimento económico-social e a satisfação das necessidades colectivas.
Mas não falta quem desvalorize este argumento, dizendo que aquela alínea tem um alcance menor que à primeira vista parece, já que interpretada à letra daria ao Governo um poder regulamentar independente de alcance vastíssimo no âmbito do qual a legalidade se limitaria à preferência da lei, sem paralelo nos textos constitucionais europeus salvo o francês89. Acrescenta-se, também, que “não pode uma atribuição genérica envolver só por si o exercício de determinada competência ou a utilização de determinados instrumentos ou formas constitucionais” 90.
A favor dos regulamentos independentes sem qualquer referência à lei, adianta-se, ainda, que já não é hoje válida a ideia de que a Administração é insusceptível de desenvolver uma actividade directamente fundada na Constituição, sem prejuízo de continuar sempre vinculada aos princípios gerais integrantes do bloco de legalidade91.
Dentro desta actividade administrativa passível de ser directamente fundada na Constituição importa salientar formas de exercício praeter legem, naquelas áreas, fora do domínio da reserva de lei, que o Parlamento se esqueceu de legislar.
Outros autores vieram sustentar o mesmo entendimento da possibilidade de regulamentos independentes fundados directamente na Constituição92.
3.4.4.4.3. Os regulamentos independentes podem estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares
SÉRVULO CORREIA93 estudou com particular minúcia a questão de saber se os regulamentos independentes podem estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. E concluiu não resultar de qualquer preceito da Constituição que só possam ser estabelecidas por lei ou decreto-lei as competências do Governo que respeitem à prática de quaisquer actos ablativos.
É que do facto de caber na reserva relativa da Assembleia da República legislar sobre direitos, liberdades e garantias [alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º na versão de 1982, sendo actualmente a alínea b) do artigo 165.º da Constituição], não se pode extrair um argumento a favor da tese que nega a possibilidade de regulamentos poderem estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. Se assim fosse, aliás, só mediante autorização legislativa poderia tal atribuição de competência ser feita através de decreto-lei. Como refere o mencionado autor 94 “De todo o modo, a normação em matéria de direitos, liberdades e garantias, que aquele preceito inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, não pode confundir-se com a previsão em sede de regras jurídicas de quaisquer providências ablativas. Isso equivaleria a aceitar ainda «o postulado liberal que, partindo de uma concepção quase-absoluta da autonomia privada, via em cada norma uma restrição aos direitos individuais95 ».
O mesmo Professor refere, ainda, que “não faria aliás sentido manter uma reserva centrada sobre a previsão em regulamento independente da criação de situações jurídicas subjectivas passivas e da restrição de situações jurídicas subjectivas activas, quando o conteúdo social do Estado de Direito conduz, no nosso País como em muitos outros, à frequente indissociabilidade de encargos e benefícios e à crescente relevância das prestações sociais para a protecção da dignidade da esfera individual” 96.
Em conclusão:
3.4.4.5. Regulamentos independentes no Estatuto Orgânico de Macau de 1976
Muito do debate travado na doutrina portuguesa tem interesse para dilucidar a questão em apreço no Ordenamento de Macau, visto que, não só algumas das normas vigentes no ordenamento português com incidência directa na matéria são semelhantes, como veremos, às de Macau, como também a ambiência jurídica — entendida esta como um conjunto de princípios que forma a espinha dorsal de um sistema jurídico — é idêntica nos dois sistemas jurídicos, bem como há uma doutrina e uma jurisprudência que têm reflectido sobre ambos os ordenamentos jurídicos.
O Estatuto Orgânico de Macau foi aprovado pela Lei n.º 1/76, que é uma lei constitucional. Tem-se considerado que o Estatuto é uma lei constitucional para o ordenamento português.97
O Estatuto Orgânico é, igualmente, considerado como materialmente constitucional, para o ordenamento jurídico de Macau, visto que as suas normas cumpriam as funções próprias de uma Constituição, ocupavam o lugar cimeiro deste ordenamento, estando a sua modificação sujeita a regras que lhes comunicava uma rigidez especial e não podiam ser contrariadas pelo legislador ordinário.98
Tanto a Assembleia Legislativa como o Governador tinham competência legislativa normal. Era o que dispunha o artigo 5.º do Estatuto:
A função legislativa será exercida pela Assembleia Legislativa e pelo Governador”.
A competência legislativa do Governador constava do artigo 13.º:
1 — A competência legislativa do Governador é exercida por meio de decretos-leis e abrange todas as matérias que não estejam reservadas aos órgãos de soberania da República ou à Assembleia Legislativa, sem prejuízo do disposto no artigo 31.º.
2 — Compete-lhe também legislar quando a Assembleia Legislativa haja concedido autorização legislativa ou tenha sido dissolvida.
3 — Compete em exclusivo ao Governador desenvolver as leis de bases dos órgãos de soberania da República e aprovar os diplomas de estruturação e funcionamento do órgão executivo”.
No que respeita à Assembleia Legislativa dispunham as alíneas c) e d) do artigo 30.º que competia a esta Assembleia:
“c) Fazer leis sobre todas as matérias que não estejam reservadas aos órgãos de soberania da República ou ao Governador, sem prejuízo do disposto no artigo 31.º;
d) Conferir ao Governador autorizações legislativas”.
A Assembleia Legislativa tinha competência legislativa absolutamente reservada nas matérias previstas no n.º 1 do artigo 31.º. A sua competência era relativamente reservada nas matérias constantes do n.º 2 do mesmo artigo, o que significava que, neste âmbito podia autorizar o Governador a legislar.
Nas matérias do n.º 3 do artigo 31.º, as competências legislativas da Assembleia Legislativa e do Governador eram concorrentes.
O Governador tinha, também, uma importante competência legislativa reservada nas matérias do n.º 3 do artigo 13.º (reserva de decreto-lei).
No que respeita à função executiva dispunha o artigo 6.º:
A função executiva será exercida pelo Governador, coadjuvado por Secretários-Adjuntos”.
E, nos termos do artigo 16.º, n. 1, alíneas b) e c) competia ao Governador:
“b) Superintender no conjunto da administração pública;
c) Regulamentar a execução das leis e demais diplomas vigentes no território que disso careçam”.
A forma dos regulamentos do Governador eram a portaria e o despacho normativo, de acordo com o n.º 2 do artigo 16.º:
“2 — No exercício das funções executivas, o Governador expede portarias, que mandará publicar no Boletim Oficial, e exara despachos a que será dada a publicidade que a natureza do assunto requerer”.
Os Secretários-Adjuntos também tinham a competência regulamentar que lhes fosse delegada pelo Governador, face ao n.º 4 do artigo 17.º 99:
“4 — Aos Secretários-Adjuntos competirá o exercício das funções executivas que neles forem delegadas pelo Governador, por meio de portaria ou em diploma orgânico previsto no n.º 3 do artigo 13.º”.
As normas fundamentais da Constituição portuguesa que atribuem ao Governo competência para fazer regulamentos são as dos artigos 112.º, n.os 7 e 8 e 199.º, alíneas c) e g) da versão de 1997 100 [que correspondem aos artigos 115.º, n.os 6 e 7 e 202.º, alíneas c) e g) da versão de 1982].
É pacífico que estas normas da Constituição portuguesa não se aplicavam no ordenamento de Macau.101
Começando pela comparação da alínea c) do artigo 199.º da Constituição «Compete ao governo, no exercício de funções administrativas: c) Fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis» com a alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico «Competem ao Governador ... c) Regulamentar a execução das leis e demais diplomas vigentes no território que disso careçam», logo se constata que a formulação do Estatuto Orgânico é bastante mais ampla que a da Constituição portuguesa.
Aquela alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º parece apontar para a possibilidade de o Governador poder regulamentar qualquer lei — com o sentido de acto legislativo, evidentemente, abrangendo as leis em sentido formal e os decretos-leis — mesmo que estes diplomas não o habilitassem caso por caso a fazer. Ou seja, a letra do Estatuto Orgânico — mais ampla que a correspondente da Constituição portuguesa — inculca a ideia da possibilidade de os regulamentos do Governador poderem ser emitidos com a mera invocação da competência que lhe atribuía o Estatuto Orgânico, sem necessidade de outra lei ordinária a autorizá-lo concretamente.
Cabe aqui abrir um parêntesis para referir que a competência do Governador de “desenvolver as leis de bases dos órgãos de soberania da República”, atribuída pelo n.º 3 do artigo 13.º do Estatuto era uma competência legislativa, aliás, reserva de decreto-lei, como se disse, pelo que estava fora de causa que pudesse utilizar neste caso o regulamento.
Pois bem, a ideia que se expôs da competência regulamentar do Governador sem necessidade de lei habilitadora, a não ser o Estatuto Orgânico, parece ser também defendida por AFONSO QUEIRÓ 102 que, a propósito desta mesma alínea, diz:
“O Estatuto Orgânico de Macau não restringe a competência regulamentar de execução do governador. Basta que uma lei, mesmo geral, careça de regulamentação, para que ao governador seja lícito regulamentá-la”.
Aliás, era este o entendimento do legislador do Território, claramente expresso nos n.os 6 e 7 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 47/90/M, de 20 de Agosto, vigente em 19 de Dezembro de 1999:
1. No início de cada diploma indicar-se-ão o órgão donde emana e a disposição do Estatuto Orgânico de Macau ou da lei ou decreto-lei ao abrigo da qual é publicado.
...
6. Tratando-se de portaria ou despacho regulamentar externo, complementar, dir-se-á:
a) “Ao abrigo do disposto no artigo da Lei (ou Decreto-Lei) n.º /M, de de, e nos termos da alínea do n.º 1 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico de Macau, o Governador determina:”;
b) “Ao abrigo do disposto no artigo da Lei (ou Decreto-Lei) n.º /M, de de , e nos termos do n.º 4 do artigo 17.º do Estatuto Orgânico de Macau e do artigo da Portaria n.º /M, de de , o Secretário-Adjunto... determina:”.
7. Tratando-se de portaria ou despacho regulamentar externo, independente, dir-se-á:
a) “Usando da faculdade conferida pela alínea do n.º 1 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico de Macau, o Governador manda:”;
b) “Usando da faculdade conferida pela alínea do n.º 1 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico de Macau e nos termos do artigo da Portaria n.º /M, de de , o Secretário-Adjunto... manda:”.
...”
Na verdade, enquanto os regulamentos complementares ou de execução (que são, como se disse os que executam directamente uma lei) tinham que invocar concretamente a lei que executavam (n.º 6 do artigo 5.º), já no caso dos regulamentos independentes, o n.º 7 do artigo 5.º apenas exigia a invocação da norma do Estatuto Orgânico que conferia directa competência ao Governador [alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º].
Daqui resulta que o legislador de Macau entendia que o Governador podia fazer regulamentos independentes fundados directamente no Estatuto Orgânico, que contivessem normação originária sem a existência de lei ordinária que habilitasse a tal o Governador.
Mas há argumentos suplementares que apontam no mesmo sentido.
Como se fez referência a propósito do debate doutrinal em Portugal, sobre a questão em apreço, o argumento principal dos defensores da tese que nega a possibilidade de regulamentos independentes ab initio, foi fornecido pelo n.º 7 do artigo 115.º, introduzido na Revisão Constitucional de 1982 e que corresponde actualmente ao n.º 8 do artigo 112.º, segundo o qual “Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”.
Ora, como já se disse, esta norma da Constituição Portuguesa não vigorava em Macau e o Estatuto Orgânico não continha nenhuma norma semelhante a ela. Cai, assim, no que toca ao ordenamento jurídico do Território de Macau, o argumento maior da tese negadora daquele tipo de regulamentos independentes.
Ora, atendendo à clareza da alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º do Estatuto Orgânico e não se divisando os outros argumentos favoráveis a esta última posição, para além do argumento da desnecessidade de o Governo (o Governador) aprovar regulamentos independentes com regulação originária, visto que dispõe de competência legislativa própria, concluímos que, de acordo com o Estatuto Orgânico de Macau de 1976, o Governador podia emitir regulamentos independentes fundados apenas na competência que lhe era conferida por aquele Estatuto, sem prejuízo de não o poder fazer para regulamentar as leis de bases dos órgãos de soberania da República (reserva de decreto-lei) e sem prejuízo, também, de não o poder fazer na área da competência legislativa reservada da Assembleia Legislativa (artigo 31.º, n.os 1 e 2)103 e da própria competência legislativa do Governador, concorrente com a Assembleia, cujas matérias constavam do n.º 3 do artigo 31.º do mesmo Estatuto (reserva de acto legislativo).
Por outro lado, a lei e os princípios gerais de direito administrativo tinham superioridade e preferência relativamente aos regulamentos administrativos do Governador e dos Secretários-Adjuntos, tornando inválida a norma regulamentar que se lhes opusesse — princípio da prevalência da lei — visto que o princípio da legalidade administrativa, constante do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição (que impõe a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à lei), de onde se extrai aquele princípio104, se aplicava em Macau105.
4. Os regulamentos independentes no ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau
4.1. A estrutura política e os poderes dos órgãos políticos da Região Administrativa Especial de Macau
A Lei Básica diz claramente que só a Assembleia Legislativa tem competência legislativa (artigo 67.º). Portanto, nem o Chefe do Executivo, nem o Governo, nem o Conselho Executivo podem fazer leis. A Lei Básica também dispõe, sem qualquer dúvida, que o Chefe do Executivo pode fazer regulamentos [artigo 50.º, alínea 5)].
Mas nenhum preceito da Lei Básica estatui sobre o que é matéria de lei e sobre o que é matéria de regulamento, nem existe nenhuma norma geral da Lei Básica que estabeleça uma competência normativa reservada da Assembleia Legislativa ou do Chefe do Executivo e do Governo.
O que existem são normas esparsas da Lei Básica a determinar que determinadas matérias devem constar de lei (lei formal da Assembleia Legislativa).
Assim, para que se possa concluir sobre o domínio da lei e do regulamento e sobre a possibilidade de os regulamentos conterem normação originária fundada apenas na Lei Básica e não nas restantes leis, tem de se começar por proceder a um exame da estrutura política da Lei Básica e dos poderes dos órgãos políticos, das suas competências normativas, para a partir daqui se poderem tirar algumas conclusões.
A estrutura política da Região é constituída por quatro entidades, o Chefe do Executivo, a Assembleia Legislativa, o Conselho Executivo e o Governo.
O Chefe do Executivo preside e nomeia os membros do Conselho Executivo106 (artigos 58.º e 57.º da Lei Básica), é o dirigente máximo da Região (artigo 45.º), bem como o dirigente máximo do Governo (artigo 62.º).
O Chefe do Executivo é responsável perante o Governo Central (artigo 45.º), que o nomeia e demite (artigo 15.º), após eleição por um colégio eleitoral (Anexo I da Lei Básica).
O Chefe do Executivo — embora, como chefe do Governo, responda perante a AL, no sentido de que tem de apresentar periodicamente à Assembleia relatórios respeitantes à execução das linhas de acção governativa e responder às interpelações dos deputados (artigo 65.º) — não está sujeito a qualquer voto de censura política da Assembleia, nem é eleito, como se viu, por esta.
O Chefe do Executivo tem um poder limitado de dissolver a Assembleia Legislativa 107 (artigo 52.º).
O Chefe do Executivo tem veto suspensivo108 das leis aprovadas pela Assembleia Legislativa (artigo 51.º).
O Chefe do Executivo nomeia parte dos deputados à Assembleia Legislativa [artigo 50.º, alínea 8)].
Só a Assembleia Legislativa tem competência legislativa, isto é, só à Assembleia Legislativa cabe fazer, alterar, suspender ou revogar leis [artigos 67.º e 71.º, alínea 1)].
O Chefe do Executivo e o Governo não têm competência legislativa, sendo este um dos traços distintivos do ordenamento de Macau, sob o Estatuto Orgânico de 1976, à face do qual o Governador tinha competência legislativa normal.
O Governo é o órgão executivo da Região (artigo 61.º), cabendo-lhe, além do mais, definir e aplicar políticas, gerir os assuntos administrativos, organizar e apresentar o orçamento e as contas finais da Região (artigo 64.º).
O Chefe do Executivo e Governo têm poder regulamentar, estabelecendo a alínea 5) do artigo 50.º que compete ao CE “Elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos” e a alínea 5) do artigo 64.º que compete ao Governo “elaborar regulamentos administrativos”.
Importa, ainda, anotar que o Governo tem competência para “Apresentar propostas de lei e de resolução” à Assembleia Legislativa [artigo 64.º alínea 5)].
4.2. A lei e o regulamento
4.2.1. Reserva de lei e prevalência da lei. Reserva de regulamento
A Lei Básica não define — tal como a generalidade das leis fundamentais e das constituições não o fazem — o que é a lei e o regulamento.
Mas pode deduzir-se da Lei Básica [cfr. os artigos 71.º alínea 1), 74.º, alínea 2), 75.º, 77.º e 78.º] que lei é o diploma aprovado como tal pela Assembleia Legislativa e que se encontra no topo da hierarquia dos actos normativos da Região. Trata-se de um conceito formal de lei, à semelhança do que acontecia com o Estatuto Orgânico de Macau.
Quanto ao regulamento, atendendo ao disposto nos artigos 50.º, alínea 5) e 64.º, alínea 5), (onde se estatui que o Chefe do Executivo pode elaborar regulamentos administrativos e Governo pode elaborar projectos de regulamentos) podemos concluir que a Lei Básica o utiliza com o sentido de normas jurídicas dimanadas de órgãos da Administração no exercício da função administrativa.
Mas é de salientar aqui que o conteúdo e a extensão da concepção de regulamento administrativo empregada na Constituição de 82 da China vigente são bastante mais amplos. Trata-se de manifestação do exercício do poder de normação administrativa conferido pela Constituição ao Conselho de Estado. Na prática do Interior da China, o âmbito de regulação é muito mais extenso do que o “regulamento” do sistema jurídico de Macau. Muitos assuntos objecto de regulação por antigos Decretos-Leis são regulados, no Interior da China, por regulamentos administrativos do Conselho de Estado.
Por conseguinte, a espécie de diploma designado por “Regulamento Administrativo”, criado pelo artigo 3.º, alínea 2) da Lei n.º 3/1999, é apenas uma espécie do género regulamentos administrativos, previsto na Lei Básica, aliás, como se retira dos arts. 3.º, alíneas 4) e 5), 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 2 e 16.º, n.º 2 da mesma Lei n.º 3/1999, que cria, ao lado dos “Regulamentos Administrativos”, os “despachos regulamentares externos” exarados pelo Chefe do Executivo e pelos titulares dos principais cargos da RAEM, uns com base no artigo 50.º da Lei Básica, outros com fundamento no artigo 64.º da mesma Lei, que são igualmente regulamentos administrativos previstos na Lei Básica.
A Lei Básica também não diz numa norma concentrada que matérias devem ser objecto de lei e de regulamento.
Há normas que indicam que certas matérias devem ser objecto de lei, como por exemplo, o preceito do artigo 6.º que dispõe que “O direito à propriedade privada é protegido por lei na Região Administrativa Especial de Macau”, o 2.º parágrafo do artigo 40.º nos termos do qual “Os direitos e as liberdades109 de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei. ...”, o 3.º parágrafo do artigo 84.º (A organização, competência e funcionamento dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau são regulados por lei), o 4.º parágrafo do artigo 90.º (A organização, competência e funcionamento do Ministério Público são regulados por lei), ou a competência da Assembleia Legislativa para definir “os elementos essenciais do regime tributário”, embora necessariamente com base em proposta apresentada pelo Governo [artigo 71.º alínea 3)].
Também a definição dos crimes e a cominação das respectivas penas tem de constar de lei (artigo 29.º).
Nestas matérias, parece claro que o Chefe do Executivo e o Governo não têm poder regulamentar (reserva de lei).
Da Lei Básica não parece transparecer uma reserva de regulamento administrativo, isto é, matérias que estão reservadas à normação do Governo, com exclusão do poder legislativo da Assembleia Legislativa.110
É certo que “os projectos de lei e de resolução que não envolvam receitas e despesas públicas, a estrutura política ou o funcionamento do Governo, podem ser apresentados, individual ou conjuntamente, por deputados à Assembleia Legislativa” (artigo 75.º, 2.º período), donde resulta, claramente, a contrario sensu, que estas matérias só podem ser objecto de lei com base em propostas de lei do Governo. Mas daí não resulta nenhuma reserva de regulamento.
Por outro lado, “A apresentação de projectos de lei e de resolução que envolvam a política do Governo deve obter prévio consentimento escrito do Chefe do Executivo” (artigo 75.º, 3.º período).
Ora, resulta desta norma que a competência legislativa da Assembleia não está limitada aos casos que a Lei Básica assinala como sua reserva de lei, já que mesmo nas matérias de política do Governo a Assembleia Legislativa pode legislar, embora necessite, nesta situação, de prévio consentimento escrito do Chefe do Executivo.
Como se disse, o Chefe do Executivo tem veto suspensivo das leis da Assembleia Legislativa, mas na Lei Básica não existe um instituto paralelo ao da ratificação dos decretos-leis que existia no ordenamento do Território de Macau (apreciação parlamentar dos diplomas legislativos do Governador). Ou seja, a Assembleia Legislativa não tem poder de ratificar os regulamentos administrativos, mas afigura-se poder revogar regulamentos administrativos. O que já não poderá é alterar directamente um regulamento, visto a Lei Básica não lhe ter outorgado competências administrativas. Mas poderá revogar o regulamento e editar lei na matéria antes objecto do regulamento administrativo.111
Uma outra questão é a que se relaciona com o princípio da prevalência da lei, relativamente ao regulamento, o princípio de que este não pode contrariar a Lei Básica e as leis em geral112.
Ele consta do 2.º parágrafo do artigo 11.º — quanto à Lei Básica (“Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta Lei”) e do artigo 65.º, quanto às leis em geral (“O Governo da Região Administrativa Especial de Macau tem de cumprir a lei...”).
Não tem suscitado dúvidas a vigência deste princípio.113
4.2.2. O poder regulamentar do Chefe do Executivo e do Governo
1. No que respeita à forma dos regulamentos administrativos a Lei Básica não a define. O artigo 3.º da Lei n.º 3/1999 prevê a existência de regulamentos administrativos do Chefe do Executivo e os despachos regulamentares externos exarados pelo Chefe do Executivo e pelos titulares dos principais cargos da Região Administrativa Especial de Macau.
2. Em França, por exemplo, o Governo não tem poder legislativo. A Constituição de 1958 enumera as matérias que pertencem ao domínio da lei e estabelece no artigo 37.º que revestem carácter regulamentar todas as que não sejam do domínio da lei.
Ou seja, face à Constituição francesa, o poder regulamentar do executivo estende-se a todos os domínios que não estejam cobertos pela reserva de lei estabelecida na Constituição.
3. Um dos importantes argumentos daqueles que, no ordenamento português, defendem a impossibilidade de o Governo emitir regulamentos independentes, isto é, com normação originária, sem a existência de lei ordinária a fixar a sua competência objectiva e subjectiva, é o de que tal poder seria desnecessário em sistemas, como o português, em que o Governo tem competência legislativa normal.
Diz-se que “a figura do regulamento independente não tem o mesmo significado e conteúdo, agora de um novo ponto de vista, numa ordem jurídica em que, como a nossa114, se admite a competência legislativa normal do Governo e numa ordem em que
tal não sucede. Só neste último caso é que aquela figura assume sentido compreensível, de modo a não deixar áreas em branco não preenchidas pelo legislador. Quer isto dizer que de um ponto de vista funcional possui o regulamento independente alguma razão de ser naquelas condições115”.
Invoca-se, igualmente, que só quando o Governo não tem capacidade legislativa “tem alguma lógica o poder regulamentar (rigorosamente independente) do Governo, de um Governo que não legisla normalmente e que carece, por ser assim, dos meios de dar cobertura a certas situações, sem ter de ficar à espera que o legislador parlamentar se pronuncie ou lhe atribua a necessária autorização legislativa”116.
Ora, no ordenamento de Macau, o Executivo não tem competência legislativa, pelo que faz todo o sentido que possa fazer regulamentos independentes, mesmo que nenhuma lei — para além da Lei Básica — o habilite concretamente a tal.
4. Em Macau, a Assembleia Legislativa não tem meios técnicos comparáveis aos do Governo, que lhe permitam editar normas jurídicas com a qualidade necessária, em quantidade suficiente.
Importa, ainda, anotar que o legislador está distanciado dos casos concretos da vida quotidiana, verificando-se também a impossibilidade de previsão completa por parte do legislador, de modo a que tem de ser a Administração a intervir para preencher os espaços deixados em branco pela lei 117.
O princípio da eficiência conduz também a ter de se reconhecer um poder regulamentar independente ao Governo. Como se expressa MANUEL AFONSO VAZ118, as teses da inadequação do órgão parlamentar, face às preocupações directivas e conformadoras do Estado dos nossos dias, têm total cabimento naqueles sistemas em que o Governo não tem competência legislativa.
Também IEONG WAN CHONG e outros119, referindo-se aos regulamentos administrativos, reforçam a mesma ideia: “A eficiência administrativa da Região Administrativa Especial de Macau depende em, larga medida da efectiva formulação e implementação destes regulamentos”.
5. Por outro lado, não existe na Lei Básica nenhum preceito semelhante ao n.º 7 do artigo 112.º da Constituição portuguesa segundo o qual “Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”, que constitui o argumento principal dos defensores da tese que nega a possibilidade de regulamentos independentes ab initio, no ordenamento jurídico português.
6. A Lei Básica confere uma ampla autonomia ao Governo para desenvolver as suas políticas, como ressalta dos artigos 107.º e segs., em consonância com o disposto no artigo 64.º, alínea 1). Já vimos que, relativamente a matérias que envolvam a política do Governo, os deputados à Assembleia Legislativa só podem apresentar projectos de lei e de resolução com prévio consentimento escrito do Governo (artigo 75.º). Ora, não é defensável que nessas matérias o Chefe do Executivo e o Governo necessitassem de lei a autorizá-los a emitir regulamentos já que é a Assembleia Legislativa que necessita de autorização do Chefe do Executivo para poder legislar. Este é mais um argumento a favor dos regulamentos independentes.
7. O Acórdão recorrido considera que se o Governo pudesse emitir, através de regulamento administrativo, normas jurídicas gerais e abstractas com efeitos externos ou que importem sacrifício à sociedade civil, sem qualquer lei habilitadora, todo o sistema de separação de poderes, aflorado no artigo 2.º da Lei Básica, ficaria comprometido, já que o governo passaria a exercer o poder legislativo por via de regulamento administrativo.
Mas não é assim. Em muito países em que está solidamente implantado o sistema de separação de poderes, como a França, que foi o berço de alguns dos teorizadores do princípio e, de certa maneira, da sua aplicação prática, o Governo exerce amplos poderes de normação originária, por meio de regulamentos independentes, nas matérias que a Constituição não reserva à competência legislativa do Parlamento.
E no sistema português vai-se ainda mais longe, já que é próprio Executivo a dispor de competência legislativa, sem que se ouçam vozes a pôr em causa o princípio da separação de poderes.
Aliás, como se disse em II, B), 3.2., a propósito do fundamento histórico do poder regulamentar, este teve a sua origem, precisamente, por se ter constatado que o poder legislativo não conseguia assegurar a produção normativa indispensável à vida social. E daí que logo nos anos subsequentes à Revolução Francesa se tenha reconhecido à Administração o poder de emanar certas regras jurídicas.
8. Para terminar e o mais importante é que temos de considerar, na apreciação da presente causa, a regulação, doutrina e prática da relação entre o regulamento administrativo e a lei prevista na Constituição da China, pelas seguintes razões:
O art. 58.º da Constituição de 82: A Assembleia Popular Nacional e o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional exercem o poder legislativo do Estado.
O art. 62.º, al. 3) (A Assembleia Popular Nacional exerce as seguintes competências): Aprovar e alterar as leis fundamentais em matéria penal, civil, de órgãos do Estado e de outros assuntos.
O art. 67.º, al. 2) (O Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional exerce as seguintes competências): Aprovar e alterar as leis com excepção das que devem ser aprovadas pela Assembleia Popular Nacional.
O art. 67.º, al. 3) (O Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional exerce as seguintes competências): Aprovar, quando a Assembleia Popular Nacional não esteja em sessão, aditamentos parciais e alterações a leis aprovadas pela Assembleia Popular Nacional, desde que não infrinjam os princípios fundamentais das mesmas leis.
O art. 89.º, al. 1) (O Conselho de Estado exerce as seguintes competências): Determinar as providências administrativas, fazer regulamentos administrativos, tomar decisões e ordens, nos termos da Constituição e da Lei.
O art. 50.º da Lei Básica de Macau: Compete ao Chefe do Executivo da RAEM: 5) Elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos.
O art. 67.º: A Assembleia Legislativa da RAEM é o órgão legislativo da RAEM.
O art. 71.º: Compete à Assembleia Legislativa da RAEM: 1) Fazer, alterar, suspender ou revogar leis, nos termos desta Lei e de acordo com os procedimentos legais.
Acresce, ainda, que o trecho da obra121 citada pelo acórdão recorrido como abonando o seu entendimento, diz, antes pelo contrário, claramente, que no direito constitucional chinês podem ser elaborados regulamentos independentes:
“...
— Para ter efeitos legais, os regulamentos administrativos e portarias devem reunir certas condições. Em termos gerais, há elementos materiais e formais. Integram os elementos materiais: 1) O órgão que os aprova tem de dotar do poder normativo administrativo nos termo de lei. A actividade de “normação” por órgão incompetente é um tipo de acto de usurpação, sem qualquer efeito legal; 2) A matéria regulada tem de caber nas competências do órgão aprovador. Fora do âmbito das competências não há efeitos legais (sublinhado nosso); 3) O seu conteúdo não pode contrariar a Constituição, as leis e as normas de nível superior. São elementos formais: 1) O procedimento de elaboração está em conformidade com lei; 2) É adoptada a forma escrita, com especificação do nome do órgão que elabora e aprova e o tempo de publicação. A estrutura e a língua estão conformes com a exigência de normalização.
...
— Segundo o fim e o conteúdo da normação, são quatro tipos a normação administrativa:
...
3. A normação auto-determinada. É uma actividade de normação administrativa desenvolvida pelo órgão administrativo no exercício das competências conferidas por lei, fixando certas regras de conduta a administrado. É uma actividade independente e autónoma do órgão administrativo de normação relativa a matéria não regulada pela lei ou por outras normas, nos termos das respectivas disposições da Constituição e de leis orgânicas, dentro das suas competências. É por isso chamada normação auto-determinada ou independente. Grande parte de normação administrativa é de carácter auto-determinado. Por exemplo, estão previstas no art.º 89.º da Constituição as diversas competências do Conselho de Estado. Este pode proceder à normação autónoma no âmbito das suas competências, sem necessidade de delegação por parte da Assembleia Popular Nacional e do seu Comité Permanente (sublinhado nosso).
...”
Assim, a exigência de que para o regulamento administrativo é precisa a autorização prévia concedida pela lei é desprovida de fundamento.
9. Também não resulta de nenhum preceito da Lei Básica que os regulamentos administrativos não possam estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. De acordo com o artigo 40.º, o que os regulamentos não podem é impor restrições aos
direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados naquele artigo 40.º, matéria que deve constar de lei. Assim, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares.
Parafraseando SÉRVULO CORREIA 122 diremos que não faz sentido manter uma reserva centrada sobre a previsão em regulamento independente da criação de situações jurídicas subjectivas passivas e da restrição de situações jurídicas subjectivas activas, quando o conteúdo social do Estado de Direito conduz à frequente indissociabilidade de encargos e benefícios e à crescente relevância das prestações sociais para a protecção da dignidade da esfera individual.
10. Conclui-se, assim, que o Chefe do Executivo pode aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei (o regulamento não pode contrariar os actos normativos de força hierárquica superior, designadamente, a Lei Básica, as leis, nem os princípios gerais de Direito, incluindo aqui os de Direito Administrativo).
É neste sentido a doutrina de Macau. Opina LINO RIBEIRO123, antigo Juiz do Tribunal Administrativo de Macau, que “A nossa posição quanto à admissibilidade dos regulamentos independentes é a de que, fora das áreas de reserva de competência legislativa da AL, o Chefe do executivo e o Governo possuem competência de normação regulamentar originária: a competência subjectiva resulta do n.º 5 dos artigos 50.º e 64.º; e a competência objectiva encontra-se nas normas que conferem ao Governo o poder de definir «por si próprio» determinadas políticas”.
E JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS124 escreve que “se compatibiliza bem com o sistema instituído pela Lei Básica o reconhecimento de uma grande largueza de competências do Chefe do Executivo e do Governo na elaboração dos regulamentos, podendo fazê-lo mesmo na ausência de leis que lhes atribuam tal poder em relação às matérias especificamente regulamentadas”.
Tanto basta para que se imponha a revogação do Acórdão recorrido.
5. O Regulamento Administrativo n.º 17/2004
Concluímos no número anterior que os regulamentos independentes não têm de surgir na sequência de lei habilitadora.
O acto administrativo contenciosamente recorrido fez aplicação do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea 1) e n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 17/2004. O preceito disciplina a permanência na Região dos não residentes que, sem autorização para exercerem actividade por conta de outrem, exerçam uma actividade, remunerada ou não.
Esta matéria não está sujeita a reserva de lei, pelo que o Chefe do Executivo poderia ter emitido o mencionado Regulamento Administrativo.
6. A Lei n.º 4/2003 (princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência)
Mas ainda que se aceitasse a tese do Acórdão recorrido, de que todos os regulamentos administrativos teriam de ter na sua base uma lei ordinária, mesmo assim a decisão do TSI não seria aceitável.
É que os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau estão estabelecidos por acto legislativo, concretamente pela Lei n.º 4/2003, de 17 de Março.
No artigo 7.º da referida Lei n.º 4/2003 dispõe-se sobre o limite de permanência na Região.
No artigo 8.º admite-se a concessão de autorização especial de permanência para fins de estudo, de reagrupamento familiar ou outros similares julgados atendíveis.
Por outro lado, o Regulamento Administrativo n.º 5/2003, de 14 de Abril, veio desenvolver os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau estabelecidos pela Lei n.º 4/2003.
No artigo 7.º deste Regulamento concretiza-se o processo de autorização de entrada e permanência na Região e nos arts. 9.º e seguintes as condições de permanência na Região.
Ora, se bem que o Regulamento Administrativo dos autos, o n.º 17/2004, estabeleça a proibição da aceitação ou prestação ilegal de trabalho e o correspondente regime sancionatório, o que é facto é que no seu artigo 4.º — que era o que estava em causa na situação dos autos — se regula a permanência na Região de pessoas, para fins similares aos mencionados no artigo 8.º da referida Lei n.º 4/2003 e a que atrás nos referimos.
Manifestamente que o artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 pode ser considerado como norma complementar do regime constante da Lei n.º 4/2003, em cujo artigo 15.º se prevê a posterior regulamentação por meio de regulamento administrativo.
Tanto bastaria para que se tivesse de considerar que a norma aplicável à situação dos autos tinha na sua base um acto legislativo.
Quer dizer, é de todo irrelevante que o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 estabeleça a proibição da aceitação ou prestação ilegal de trabalho e o correspondente regime sancionatório, quando a norma que era relevante para apreciação do requerimento de permanência na Região não respeitava a trabalho ilegal e muito menos dizia respeito a sancionamento de trabalho ilegal, limitando-se a dispor sobre matéria respeitante à permanência de pessoas na Região, embora conexionada com a prestação de trabalho ou serviços em Macau.
Não estava, pois, em causa, no caso dos autos, qualquer punição administrativa de situações de trabalho ilegal, pelo que não se entende a que propósito é que o Acórdão recorrido abordou a questão de saber se o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 podia revogar o regime constante da Lei n.º 2/90/M (Lei da Imigração Clandestina) no que concerne a tal regime punitivo.
Também por esta ordem de razões se imporia a revogação do Acórdão recorrido.
IV — Decisão
Face ao expendido, revogam o Acórdão recorrido, devendo o TSI apreciar as questões suscitadas pela recorrente do recurso contencioso, se outro motivo a tal não obstar.
Sem custas.
Macau, 18 de Julho de 2007.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) — Sam Hou Fai — Chu Kin
Magistrada do Ministério Público que esteve presente na conferência: Song Man Lei