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Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público interpôs o presente “recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência” alegando que a solução jurídica adoptada no “Acórdão (recorrido)” do Tribunal de Segunda Instância de 02.06.2022, proferido nos Autos de Recurso Penal n.º 288/2022, estava em oposição à decisão por este mesmo Tribunal prolatada no Acórdão de 15.10.2021, (Proc. n.º 663/2021, doravante designado “Acórdão fundamento”); (cfr., fls. 2 a 31-v, onde consta também cópia das invocadas “decisões em oposição” e cujo teor aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por Acórdão (preliminar) deste Tribunal de Última Instância deu-se como verificada a aludida “oposição de julgados”, ordenando-se o prosseguimento do presente recurso; (cfr., fls. 49 a 54-v).
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Adequadamente processados estando os autos, (com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, e após solicitada a remessa do Procs. n.ºs 288/2022 e 663/2021 a esta Instância), teve lugar a Conferência a que se refere o art. 46º, n.º 2 da L.B.O.J. assim como o art. 425º do C.P.P.M..
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Cumpre agora expor o sentido da deliberação tomada.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Como no anterior Acórdão – onde se decidiu pela verificação da invocada “oposição de julgados” – já se teve oportunidade de ponderar e afirmar, enquanto no “Acórdão recorrido” se considerou que o crime de “roubo qualificado”, por utilização de arma proibida, e o de “armas proibidas” estão numa “relação de concurso efectivo”, no “Acórdão fundamento” entendeu-se que o aludido “concurso” era, (tão só), “aparente”, devendo o arguido ser apenas punido por um único crime, (e, assim, pelo “mais grave”).
Sendo esta a “questão” – da aludida “oposição de julgados” – que a esta Instância é agora trazida para apreciação, e sendo o Exmo. Magistrado, ora Recorrente, de opinião que correcto é o entendimento adoptado no referido “Acórdão fundamento”, (cfr., fls. 58 a 66), vejamos que solução adoptar, passando-se, então, a decidir se, a prática dos ditos crimes de “roubo qualificado”, (por utilização de arma proibida na sua execução) – cfr., artºs 204º, n.º 2, al. b), e 198º, n.º 2 do C.P.M. – e o de “armas proibidas (e substâncias explosivas)” – do art. 262º, n.º 1 do referido Código e art. 1º, al. c) e art. 6º, n.º 1, al. b) do D.L. n.º 77/99/M, de 08.11 – integra uma relação de “concurso efectivo” ou “aparente”.
Pois bem, a problemática relacionada com a “matéria” e “questão” da “unidade e pluralidade de infracções” não é recente, e tem sido objecto de abundantes reflexões e profundos estudos, (nem sempre no mesmo sentido), o que, decerto, irá continuar a suceder, pois que constitui tema que apaixona, preocupa e inquieta não só estudiosos e cultores do Direito, mas, especialmente, a quem, sobre a mesma cabe decidir.
Basta pois recordar que ao tratar do tema – na sua dissertação de doutoramento publicada em 1945, e em sede da então chamada “acumulação de infracções” prevista no art. 38º do Código Penal de 1886 – já o Prof. Eduardo Correia alertava que não se tratava de “tarefa simples”, adiantando que “a distinção entre unidade e pluralidade de delitos parece, à primeira vista, fácil e clara, logo a um mais íntimo contacto revela ter um tão vasto objecto e ligar-se a um tão largo número de questões, que se transforma num dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal”, salientando, ainda, que o mesmo constituía um “tormentoso problema”; (cfr., “A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 4 a 8, podendo-se, no mesmo sentido, ver também, o Prof. Cavaleiro de Ferreira que o apelidou de “problema dogmático extramente complicado”, in “Lições de Direito Penal”, e Faria Costa, que o considerou “um dos mais complexos e difíceis assuntos de todo o direito penal”, in “Formas do Crime”, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J.).
Numa tentativa de enquadrar e definir o “problema” a tratar, adequado se afigura aqui citar desde já M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio que consideram que “A teoria do concurso tem como ponto de partida clarificar a seguinte questão: quais as opções, no seio do direito penal, quando uma e a mesma pessoa – seja com uma só acção, seja com várias acções – viola vários tipos de crime ou viola o mesmo tipo de crime várias vezes de modo ilícito e culposo, podendo ser em qualquer modalidade de autoria ou de comparticipação”, e que, “Levando em conta a sequência do art. 30º/1” – com redacção idêntica ao art. 29º, n.º 1 do C.P.M. sobre a mesma matéria – “quando um agente realiza vários tipos de crime ou comete várias vezes o mesmo tipo de crime (é indiferente que o tenha feito com uma ou várias acções criminosas), existem duas possibilidades: ou há unidade do facto punível – um único crime; ou existe um concurso efetivo ou verdadeiro”; (in “Código Penal – Parte geral e especial”, Almedina, 2014, pág. 219).
Não sendo (certamente) este o local (próprio) para alongadas considerações (teóricas, ou dogmáticas) sobre toda a (evolução da) doutrina e jurisprudência sobre a matéria, (e sem pretensões de se esgotar o tema), importa, antes de mais, e sem outras demoras, atentar que a “base legal” para se poder chegar à solução da “questão” de que nos ocupamos encontra-se plasmada no (referido) art. 29º do C.P.M., que, sob a epígrafe “Concurso de crimes e crime continuado”, prescreve que:
“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
E, como (adequada) forma que se nos apresenta para iniciarmos o tratamento da “questão”, ocorre-nos, recordar, como igualmente nota M. Leal-Henriques, (in “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, pág. 376 e 377), que “este preceito conclui o Capítulo dedicado as Formas do Crime, agora na parte respeitante ao número de crimes cometidos”, valendo ainda a pena atentar, acompanhando-se a opinião do mesmo Autor, “que o legislador de Macau concebeu a propósito uma estrutura formada por dois grandes blocos de ilícitos criminais”, o primeiro, constituído pelos “crimes únicos”, e o segundo, pelo chamado “concurso de crimes”, podendo-se nos primeiros encontrar “os crimes únicos de uma só acção ou conduta, os crimes únicos fragmentados em várias acções ou condutas e os crimes únicos cometidos em forma continuada”, (havendo, assim, “crime unitário” quando o(s) agente(s) leva(m) a cabo “um único facto ilícito”), existindo, por sua vez, (atento o disposto no transcrito art. 29º, n.º 1), “concurso”, ou “pluralidade de crimes”, quando se comete mais do que um facto ilícito típico, ou quando se comete o mesmo facto ilícito típico mais do que uma vez; (cfr., v.g., Eduardo Correia in, “Responderá o Ladrão que vende a Coisa Furtada Simultaneamente pelos Crimes de Furto e Burla?”, Revista de Direito e Estudos Sociais, 1945, pág. 375, e in “Parecer: Concurso de Infracções”, Justiça Portuguesa, 1949, pág. 65; António da Graça e Miranda in, “Unidade e Pluralidade de Crimes”, Revista de Justiça, 1948, pág. 50; Nélson Hungria in, “Concurso Aparente de Normas Penais”, Repertorio Enciclopédico do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, 1949, pág. 307; Henriques Sêco in, “Theoria da accumulação ou pluralidade de delitos”, R.L.J., Ano 9, pág. 49 a 83, e “Theoria da connexão dos crimes”, R.L.J., Ano 9, pág. 97 a 114; Manuel Cavaleiro de Ferreira in, “Concurso de Normas Penais”, Scientia Ivridica, n.º 164-165, 1980, pág. 159; Cavaleiro de Ferreira in, ob. cit.; Carlos Santiago Nino in, “Concurso y continuación de delitos de omisión”, Doctrina Penal, 1982, pág. 283 a 353; José de Faria Costa in, “O novo Código Penal português e legislação complementar”, Jornadas de Direito Criminal, 1983; Teresa Pizarro Beleza in, “Direito Penal”, Vol. II, A.A.F.D.L., pág. 600 e segs.; A. J. Sanz Morán in, “El concurso de delitos. Aspectos de política legislativa”, Universidad de Valladolid, 1986; Gumersindo Guinarte Cabada in, “El Concurso Medial de Delitos”, Estudios Penales y Criminológicos, Vol. XIII, Santiago de Compostela, 1990, pág. 159; Jorge de Figueiredo Dias in, “Sobre o estado actual da doutrina do crime. 1ª Parte: Sobre os Fundamentos da Doutrina e a Construção do Tipo-de-Ilícito”, R.P.C.C., Ano I, 1991; Maria João Antunes in, “Concurso de Contra-Ordenações”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1991, pág. 463; F. Muñoz Conde e M. García Arán in, “Derecho Penal. Parte Geral”, Valencia, 1993, pág. 482 e segs.; Luis e Romero Soto in, “Concurso Aparente de Leyes”, Santa Fé de Bogotá: Temis, 1993; José Ulises Hernández Plasencia in, “Delitos de Peligro con Verificación de Resultado: Concurso de Leyes?”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1994, pág. 111; Miguel Pedrosa Machado in, “Nótula sobre a relação de concurso ideal entre burla e falsificação”, Direito e Justiça, 1995, Vol. IX, tomo 1, pág. 251 a 254; M. Pedrosa Machado in, “Nótula sobre a relação de concurso entre burla e falsificação”, Direito e Justiça, Vol. IX, Tomo 1, pág. 251 e segs.; Pedro Caeiro e Cláudia Santos in, “Negligência Inconsciente e Pluralidade de Eventos: Tipo-de-Ilícito Negligente – Unidade Criminosa e Concurso de Crimes – Princípio da Culpa”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, pág. 127; Jorge dos Reis Bravo in, “Negligência, Unidade de Conduta e Pluralidade de Eventos”, Revista do Ministério Público, 1997, pág. 97; José António Choclán Montalvo in, “El Concurso de Infracciones en la Reforma Penal”, Cuadernos de Politica Criminal, 1997, pág. 7, e in “La Unidad y Pluralidad de Hechos en la Teoría del Concurso de Delitos”, Poder Judicial, 1998, pág. 271; Miguel Pedrosa Machado in, “Nótula sobre a Relação de Concurso Ideal entre Burla e Falsificação”, Formas do Crime: Textos Diversos, 1998, pág. 73; Núria Castelló Nicás in, “El Concurso de Normas Penales”, Granada, 2000; Andrei Zenkner Schmidt in, “Concurso Aparente de Normas Penais”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2001, pág. 67; Luís Duarte D’Almeida in, “O ‘concurso de normas’ em direito penal”, 2004; José Lobo Moutinho in, “Da unidade à pluralidade dos crimes no Direito Penal Português”, Universidade Católica, 2005; Santiago Mir Puig in, “Derecho Penal. Parte Geral”, 8ª ed., Buenos Aires, 2009, pág. 652 e segs.; e, ainda, Cristina M. C. Pinheiro Líbano Monteiro in, “Do concurso de crimes ao «concurso de ilícitos» em direito penal”, 2013, Universidade de Coimbra).
Em sede da “pluralidade de infracções”, é ainda comum distinguir diversos “tipos de concurso”.
Surge assim o “concurso legal”, “aparente” ou “impuro”, que corresponde à situação em que, inicial e abstractamente, a conduta do agente é susceptível de preencher vários tipos de crime, mas em que se vem a reconhecer após interpretação que, afinal, só “um” deles deve subsistir, em prejuízo dos demais, existindo, na realidade, um mero “concurso de normas” (que não está sequer previsto no citado art. 29º do C.P.M.), e em que apenas uma delas se aplica, sendo as demais afastadas por efeito das regras (de exclusão) da “especialidade”, (em que uma norma especial derroga a norma geral), da “consumpção”, (em que a concorrência de normas se estabelece entre um tipo legal mais grave e um tipo legal menos grave, sendo que a protecção dada pelo primeiro já absorve a dada pelo segundo), e da “subsidiariedade”, (que corresponde às situações em que a lei condiciona de forma expressa a aplicação de um preceito à não aplicação de uma outra norma mais grave).
Ou seja, o que em bom rigor acaba por suceder, é ter de se seleccionar uma “norma dominante” que acaba por esgotar (totalmente) o “desvalor” global da conduta do agente, fazendo a máxima protecção dos bens jurídicos ameaçados ou lesados, havendo, assim, uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes «efectivamente cometidos»”.
Com efeito, e como também entende o Prof. Figueiredo Dias: “A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais do que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77.º seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada (…) A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global. (…)
O pensamento exposto, se encontra o seu campo de eleição nos delitos de apropriação e nos correspectivos crimes de encobrimento ou de asseguramento, continua no entanto válido relativamente a crimes de índole completamente diferente. Circunstâncias, como, p.ex., a de se utilizar arma proibida (art. 275.º) ou a de , para encobrir o facto principal, esconder o cadáver, de o jogar num poço ou num rio, ou mesmo de o desmembrar ou desfigurar (art. 254.º-1) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma do concurso aparente. (…)
O critério acabado de apresentar parece possuir virtualidades bastantes para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Parece aqui particularmente claro – a ponto de já esta circunstância justificar porventura uma autonomização (relativa) do critério face ao anterior – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração (…)”; (in “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., pág. 1015 a 1018).
Diversa é a situação do “concurso efectivo”, (“verdadeiro”, “genuíno”, “próprio” ou “puro”), que ocorre quando se comete, (“efectivamente”), “mais do que um crime”, (quer através da mesma conduta, quer por meio de condutas diferentes), e em que há uma “pluralidade de acções típicas” – a cada uma delas correspondendo e sendo aplicável “uma pena” parcelar para posterior unificação jurídica, (ou “cúmulo jurídico” das diversas penas parcelares), de acordo com as regras estatuídas no art. 71º do C.P.M. – podendo-se, aqui, distinguir, o “concurso ideal”, que pode ser “homogéneo” ou “heterogéneo”, consoante, com uma só acção, ou conduta, se preenche o mesmo tipo mais do que uma vez, ou se preenchem diferentes tipos, e o “concurso real”, em que através de várias condutas se preenchem diversos tipos de ilícito; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 06.12.2017, Proc. n.º 78/2017).
Referindo-se, (mais especificamente), a esta matéria, (e na sua habitual clareza), considera o Prof. Germano Marques da Silva que:
“A distinção tradicional entre concurso real e concurso ideal assenta na unidade ou pluralidade de condutas criminosas. Assim, se o agente comete mais de um crime mediante duas ou mais acções, como, v. g., se hoje furta e amanha mata uma pessoa, teríamos dois crimes, um concurso real; se, porém, com a mesma conduta, em sentido amplo, produz mais do que um evento, como, v. g., se com um só tiro mata duas pessoas, ou se com um só tiro destrói uma montra e mata ou fere uma pessoa, estaríamos perante um concurso ideal ou formal.
Os exemplos apontados mostram que o concurso pode ser homogéneo ou heterogéneo. É homogéneo quando os crimes cometidos são idênticos, da mesma espécie – a mesma espécie de crime é perpetrado duas ou mais vezes pela conduta do agente – e é heterogéneo quando são de espécie diferente – duas ou mais espécies de crime são efetivamente cometidos”; (in “Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime”, pág. 311, podendo-se, também, sobre a dita “distinção”, e com exemplos claros, ver M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio in, ob. cit., pág. 228).
— Feita que se nos parece ter ficado uma breve “nota introdutória” sobre a “matéria” a tratar, e da análise e reflexão que sobre a (concreta) questão em apreciação tivemos oportunidade de efectuar, cabe consignar que se tem adoptado uma posição, no mínimo, maioritária, no sentido de se considerar que com o crime de “roubo” (ainda que agravado com o uso de arma proibida), e o de “armas proibidas (e substâncias explosivas)”, tutelam-se “valores (e interesses) distintos”, e, por isso, de considerar, como se decidiu no “Acórdão (agora) recorrido”, que a sua prática integra um “concurso efectivo” de crimes.
Eis, na parte que interessa, a “argumentação” sobre a questão expendida no “Acórdão recorrido”:
“(…)
Dispõe o artigo 204.º do CP que,
1. Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. A pena é a de prisão de 3 a 15 anos se:
a) Qualquer dos agentes produzir perigo para a vida de outra pessoa ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa grave à integridade física; ou
b) Se verificar qualquer dos requisitos referidos nos n.os 1 e 2 do artigo 198.º, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.
3. Se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 10 a 20 anos.
Estatui o artigo 198.º do mesmo livro de leis que,
1. Quem furtar coisa móvel alheia
a) de valor elevado,
b) transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação ou cais,
c) afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério,
d) explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública ou perigo comum,
e) fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo, equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança,
f) introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar,
g) com usurpação de título, uniforme ou insígnia de funcionário, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;
h) fazendo da prática de furtos modo de vida, ou
i) deixando a vítima em difícil situação económica, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2. Quem furtar coisa móvel alheia
a) de valor consideravelmente elevado,
b) que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico,
c) que, por natureza, seja altamente perigosa,
d) que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público,
e) introduzindo-se em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas,
f) trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta, ou
g) como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do grupo, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
3. Se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos nos números anteriores, só é considerado, para efeitos de determinação da pena aplicável, o que tiver efeito agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na determinação da medida da pena.
4. Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de valor diminuto.
Os requisitos constitutivos do crime de roubo têm dois elementos objectivos: uso de violência (por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir) e subtracção de bens alheios (subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia); e um elemento subjectivo: ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa.
O que se encontra disposto no artigo 198.º são as circunstâncias agravantes do roubo.
Preceitua o artigo 262.º que,
1. Quem importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo arma proibida ou engenho ou substância explosivos, ou capazes de produzir explosão nuclear, radioactivos ou próprios para fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Se as condutas referidas no número anterior disserem respeito
a) a engenho destinado a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas, ou
b) a mecanismo de propulsão, câmara, tambor ou cano de qualquer arma proibida, silenciador ou outro aparelho de fim análogo, mira telescópica ou munições, destinados a serem montados nessas armas ou por elas descarregadas, se desacompanhados destas, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. Quem detiver ou trouxer consigo arma branca ou outro instrumento, com o fim de serem usados como arma de agressão ou que possam ser utilizados para tal fim, não justificando a sua posse, é punido com pena de prisão até 2 anos.
O crime de arma proibida encontra-se enquadrado no Capítulo de Crimes de perigo comum, e visa proteger os bens jurídicos da ordem pública, segurança pública e tranquilidade pública.
(…)
Nos termos do artigo 29.º, n.º 1 do CP, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. E de acordo com o n.º 2, o número de crimes também tem a ver com o bem jurídico que o tipo de crime visa tutelar.
Quanto à questão de saber se entre os supra mencionados dois crimes está uma relação de concurso real ou concurso aparente, foram plasmados entendimentos divergentes tanto nos acórdãos dos tribunais de Macau como nos dos tribunais portugueses. 1, 2
Acórdão do TSI de Macau de 11 de Janeiro de 2018, proferido no processo n.º 1086/2017:
“Este Tribunal entende que, por os dois crimes visar proteger bens jurídicos diferentes, respectivamente a segurança pessoal e patrimonial (crime de roubo qualificado) e a segurança e paz públicas (detenção de arma branca), não existe consunção entre os mesmos, havendo antes concurso real.”
Acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 1993, proferido no processo n.º 43128:
“O crime de roubo, embora qualificado no Cód. Penal de 1982 como crime contra a propriedade, é um crime complexo em que os bens jurídicos protegidos não são só a propriedade como a liberdade, a integridade física ou até a própria vida da pessoa roubada.
Diferentes são os bens jurídicos protegidos pelo artigo 260.º do mesmo diploma (para Macau, art.º 262.º), preceito que tem em vista tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas.
Não operam em relação a estes dois crimes as regras da consunção, pois que o tipo legal de crime de roubo não inclui o preenchimento do tipo legal do crime de detenção e uso de arma proibida.
O que qualifica o roubo é a utilização de arma de fogo, tout court, e não a detenção e uso de arma proibida, infracção autónoma.
(Ac, STJ de Portugal, de 04.02.93, Proc.º n.º 43128)” (Manuel Leal-Henriques, “Anotação e comentário ao Código Penal de Macau”, Volume V, 2017, pág. 255).
Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º STJ XXIII:
“Tendo a arguida permanecido com a arma após o cometimento do crime de homicídio (qualificado precisamente pelo uso de arma), sem qualquer título para a usar, o crime de detenção de arma proibida ganha autonomia e fica afastado o concurso aparente dos aludidos crimes. (Ac. STJ de Portugal, de 15.01.2015, Col. Jur. Acs. STJ XXIII, 1, pág. 203).” (Ac. STJ de Portugal, de 04.02.93, Proc.º n.º 43128) (Manuel Leal-Henriques, “Anotação e comentário ao Código Penal de Macau”, Volume V, 2017, pág. 259).
2 Acórdãos que apoiam o concurso aparente:
Acórdão do TSI de Macau de 11 de Setembro de 2003, proferido no processo n.º 154/2003:
“Dest’arte, o arguido deve ser absolvido do crime de detenção de arma proibida, por inexistência, no caso, de qualquer concurso real efectivo deste crime com o crime de roubo qualificado. Pois, como in casu o arguido escondeu uma faca legalmente considerada como arma proibida para consumar o crime de roubo contra a ofendida, verifica-se tão-só concurso aparente entre o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 262.º, n.º 1, do Código Penal, e o crime de roubo qualificado p. e p. pelo art.º 204.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 198.º, n.º 2, al. f), do mesmo Código, justamente porque tal detenção é elemento constitutivo e essencial deste último crime, pelo que qualquer entendimento diferente implica violação do princípio ne bis in idem. Aliás, o crime de roubo qualificado por tal circunstância (arma) já consome a protecção visada pelo tipo de detenção de arma em face do perigo, em última instância, de lesão da integridade física ou da vida das pessoas.”
Acórdão do TSI de Macau de 15 de Outubro de 2021, proferido no processo n.º 663/2021:
“Objectivamente, a detenção de faca pelo recorrente constitui o tipo legal do crime de arma proibida e, indispensavelmente, o tipo legal do crime de roubo. Nesta circunstância, a condenação do mesmo por dois crimes individuais resultará na violação do princípio non bis in id. Razão pela qual, havendo uma relação de consunção/concurso aparente entre o crime de arma proibida e o crime de roubo qualificado, o recorrente deve ser condenado pela prática do crime de roubo qualificado cuja pena é mais grave.”
Acórdão do Tribunal de Coimbra de 9 de Maio de 1990, proferido no processo n.º BMJ397-574:
“A punição por crime de homicídio voluntário, qualificado por uso e porte de arma proibida, consome a correspondente ao crime p. e p. pelo artigo 260.º do Cód. Penal de 1982 (para Macau, art.º 262.º, n.º 1).
(Ac. Rel. Coimbra, Portugal, de 09.05.90, BMJ397-574).” (Ac. STJ de Portugal, de 04.02.93, Proc.º n.º 43128) (Manuel Leal-Henriques, “Anotação e comentário ao Código Penal de Macau”, Volume V, 2017, pág. 255).
Porém, salvo o devido respeito por opinião diversa, este Tribunal entende que, visando os dois crimes proteger bens jurídicos diferentes, nomeadamente a segurança pessoal e patrimonial (crime de roubo) e a segurança e paz públicas (crime de detenção de arma proibida), não existe consunção entre os mesmos, havendo antes concurso real.
Logo, a conduta da recorrente de deter o spray de pimenta não só preenche um crime de roubo (artigo 204.º, n.º 1, conjugado com o n.º 2, alínea b), artigo 198.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea f) e artigo 196.º, alínea a) do Código Penal) (o Tribunal a quo só a condenou pelo artigo 204.º, n.º 1, conjugado com o n.º 2, alínea b), artigo 198.º, n.º 1, alínea a) e artigo 196.º, alínea a)) como ainda um crime de arma proibida (artigo 262.º, n.º 1 do CP, conjugado com o artigo 6.º, n.º 1, alínea b) e artigo 1.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 77/99/M).
(…)”; (cfr., fls. 15 a 18 e 41 a 48 do Apenso).
Por sua vez, esta, em síntese que se nos apresenta relevante, as razões do “Acórdão fundamento”:
“(…)
Certo é que há doutrina que defende que existe uma relação de concurso material entre o crime de armas proibidas e o crime de roubo por ofenderem bens jurídicos diferentes.
De qualquer modo, na qualificação do crime, é indispensável analisar, concerta e globalmente, os factos do agente, no sentido de observar a correlação e a autonomia existentes entre os actos do agente, a fim de concluir se os actos do agente constituem um crime ou vários crimes relativamente autónomos.
Conforme o acórdão proferido em 11 de Setembro de 2003 pelo TSI no processo n.º 154/2003:
1. Se o arguido escondeu uma faca legalmente considerada como arma proibida para consumar o crime de roubo, verifica-se concurso aparente (e não concurso real efectivo) entre o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 262º, n.º 1, do Código Penal, e o crime de roubo qualificado p. e p. pelo art.º 204º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 198º, n.º 2, al. f), do mesmo Código, justamente porque tal detenção é elemento constitutivo e essencial deste último crime.
2. Entendimento diferente implica violação do princípio ne bis in idem.
3. Aliás, o crime de roubo qualificado por tal circunstância (arma) consome a protecção visada pelo tipo de detenção de arma em face do perigo, em última instância, de lesão da integridade física ou da vida das pessoas.
(…) O Recorrente tinha planeado antecipadamente roubar os bens da Ofendida com faca (ponto 7 dos factos provados). Depois da prática do roubo com faca, o Recorrente fugiu do hotel com a sobredita faca e descartou-a no caminho. No decurso do roubo, o Recorrente apenas apontou, ameaçou e atacou a Ofendida com a faca em causa, não tendo empregado outras violências. Daí se vislumbra que, em caso de não verificação da utilização da faca pelo Recorrente, não haverá a circunstância de pôr a Ofendida na impossibilidade de resistir, por meio de violência, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, o que implica a falta de facto essencial constitutivo do crime de roubo, impossibilitando assim o apuramento da prática do crime de roubo pelo Recorrente; o valor da quantia roubada é consideravelmente elevado, não havendo base das circunstâncias agravantes do crime de roubo qualificado.
Aliás, a detenção e a utilização são conceitos que não podem ser claramente separados, já que não seria possível a utilização da faca pelo Recorrente, se este não a detivesse.
Daí se vislumbra que a detenção da faca pelo Recorrente constitui, objectivamente, tanto o tipo do crime de armas proibidas como o tipo indispensável do crime de roubo, assim sendo, a condenação do Recorrente por dois crimes autónomos desencadeia o problema de bis in idem.
Nesta conformidade, existe uma relação de consumpção entre o crime de armas proibidas e o crime de roubo qualificado praticados pelo Recorrente, devendo o Recorrente ser condenado pelo crime de roubo qualificado, por qual se aplica uma pena relativamente mais pesada”; (cfr., fls. 29 a 30 e 76 a 79 do Apenso).
Pronunciando-se, (concretamente) sobre a “questão”, considera Paulo Pinto de Albuquerque que: “Há uma relação de concurso efectivo entre o crime de roubo e o crime de detenção de arma proibida (…)”, (in “Comentário do Código Penal”, 4ª ed., pág. 896, nota 33), no mesmo sentido afirmando José António Barreiros, que defende (sucintamente) que “(…) importa relevar que o roubo pode ser praticado através do uso de armas”, mas que “se se tratar de armas proibidas está o roubo em concurso real com o crime tipificado no artigo 275.º, n.º 2 do Código Penal de 1995 (artigo 260.º do Código Penal de 1982)”, (in “Crimes contra o Património”, pág. 95), cabendo aqui referir também que, se bem ajuizamos, adopta Manuel Maia Gonçalves uma “solução intermédia” ao considerar “De notar que as circunstâncias que funcionam como qualificativas podem elas próprias, só por si, integrar uma infracção (arma proibida, ofensa à integridade física, homicídio por negligência, etc.)”, e que, “Nem sempre, em tal caso, será fácil saber se esta última infracção se encontra consumida pela de roubo, sendo necessário examinar a questão à luz dos princípios gerais sobre concurso de infracções, particularmente sobre a consunção, pois que só a essa luz a solução pode ser encontrada”; (in “Código Penal Português Anotado e Comentado”, 17ª ed., 2005, pág. 714).
E, nesta conformidade, (se bem entendemos e ajuizamos), possível é pois considerar que o crime de “armas proibidas e substâncias explosivas” seja configurado como um “crime dominado”, “crime-meio” ou “crime-instrumental” do “crime-principal ou dominante” de “roubo qualificado”, sendo assim de se enquadrar a factualidade provada em sede do “Acórdão recorrido” – “Em 7 de Julho de 2021, a recorrente, Fang Buzheng e Zhen Zhen entraram em Macau (vide fls. 58 dos autos), trazendo consigo dois aerossóis de capsaicina destinados a ser utilizados na prática da referida substração planeada”, (cfr., ponto 3º da matéria de facto dada como provada) – como a prática de um “crime-meio”, que seria consumido pelo “crime dominante”, no caso, o de “roubo qualificado”, (sendo então caso de consignar que, como o próprio Prof. Figueiredo Dias não deixa de reconhecer, constituiria esta uma posição que se apoia numa concepção “muito ampla de concurso aparente”, “face ao entendimento tradicional e ainda hoje comum da categoria da ‘consumpção’”, in ob. cit., pág. 1023).
Porém, em nossa modesta opinião, (e tendo presente a “letra” e “ratio” do estatuído no citado art. 29º, n.º 1 do C.P.M.), cremos que o critério – determinante – da “unidade ou pluralidade de crimes” é, pois, o do “tipo legal de crime(s) – efectivamente – cometido(s)”.
Com efeito, e sem prejuízo do muito respeito por diferente opinião, apresenta-se-nos que decisivo da “unidade ou pluralidade de crimes” não é a “unidade ou pluralidade de acções” (em si mesmas consideradas), mas, antes, e, essencialmente, a “unidade ou pluralidade de «tipos legais» de crime cometidos” pela conduta de um mesmo agente.
Na verdade, e subscrevendo as considerações do Prof. Figueiredo Dias, podemos definir “bem jurídico” como a “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”; (in ob. cit., pág. 114, podendo-se também ver Hans Jescheck in, “Tratado de Derecho Penal: Parte Geral”, 4ª ed., Granada, que considera o “bem jurídico” como “um bem vital de comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente”; Ivan Luiz da Silva in, “O bem jurídico-penal como limite material à intervenção criminal”; e Luiz Regis Prado in, “Bem Jurídico-Penal e Constituição”, São Paulo, Revista dos Tribunais).
Como tal, e destinando-se as normas penais a proteger “bens jurídicos”, adequado se mostra de considerar – e revisitar o conhecido pensamento do Prof. Eduardo Correia, no sentido de – que uma “pluralidade de crimes” significa uma “pluralidade de valores jurídicos negados”, e, então, se a actividade do agente preenche “vários tipos legais de crime”, necessariamente, negam-se “diversos valores jurídico-criminais”, (e “outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano, naturalístico lhes corresponder uma só actividade”), verificando-se, por conseguinte, uma “pluralidade de infracções”, valendo ainda a pena recordar que, como igualmente salientava o Prof. Figueiredo Dias, (in “Direito Penal – Sumários”, pág. 48), “o bem jurídico … é o cerne do tipo e da valoração que este exprime”, pelo que, “deste ponto de vista fica teleologicamente justificado que seja a unidade ou pluralidade de bens jurídicos (e portanto a unidade ou pluralidade de tipos) violados o factor determinante de unidade ou pluralidade de crimes em que uma certa relação de vida se traduz”, (sendo, então, de concluir que, se só “um tipo legal de crime” é realizado, a actividade do agente só nega “um valor jurídico-criminal”, e, estaríamos, portanto, perante uma “única infracção”).
Neste mesmo sentido, veja-se também Manuel Leal-Henriques, (in “Direito Penal de Macau”, C.F.J.J., 2019, pág. 139 e segs.), que considera (nomeadamente) que:
“O critério que iluminou o legislador na concepção desta dicotomia entre unidade e pluralidade de infracções assenta em parâmetros jurídicos ou valorativos, segundo os quais a delimitação entre ambos os núcleos se faz em função do número de tipos de crime efectivamente praticados ou pelo número de vezes que o mesmo tipo é preenchido pela conduta do agente, tendo em atenção, portanto, os bens jurídicos efetivamente ofendidos, o que significa que não serão causas naturalísticas (acontecimentos na sua materialidade, isto é, extra – legais), mas antes critérios legais (determinações da lei) que ditarão a separação entre os dois mundos (unidade e pluralidade de ilícitos criminais)”, afirmando, ainda, ser “neste sentido, que se vem manifestando a Jurisprudência, ao decidir que a formulação legal da distinção entre unidade e pluralidade de infracções levada ao art.º 29.º do Cód. Penal repousa na lei, tomando como base um critério teleológico que autoriza a concluir que haverá pluralidade de crimes «quando ocorre a violação plúrima do mesmo ou de diferentes bens jurídicos, protegidos pelas respectivas normas incriminadoras» (Ac. STJ de Portugal de 29.10.2008, Proc. n.º 1612/2008-5.ª), permitindo assim inferir que «a razão teleológica para determinar as normas efetivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efetivamente violados» (Ac. STJ de Portugal de 05.11.2008, Proc. n.º 2817/2008-3.ª)”, salientando que “Deve-se a EDUARDO CORREIA porventura a primeira formulação consistente sobre a forma de se proceder à distinção entre elas, segundo a qual a mesma assentará não na unidade ou pluralidade de acções, mas sim na unidade ou pluralidade de tipos legais violados, falando-se assim em unidade quando o agente realiza um único tipo legal de crime e pluralidade quando realiza mais do que um tipo legal de crime (cfr. A Teoria do Concurso em Direito Criminal, I – Unidade e Pluralidade de Infracções e ainda Direito Criminal, II)”.
Nesta conformidade, e admitindo-se que a matéria em causa comporte outro entendimento, (que obviamente se respeita), e, em face do que se acaba de expor, não nos parece pois assim que inadequada tenha sido a decisão ínsita no “Acórdão ora recorrido”, não se nos apresentando que tenha o Colectivo a quo incorrido na pelo Exmo. Recorrente assacada violação do “princípio do ne bis in idem” – que, devendo-se entender como estatuindo, essencialmente, que o facto que lese ou afecte uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado e sancionado duas vezes – pois que nada impede que o legislador, (como se nos mostra ser o caso), configure o sistema sancionatório penal quanto ao “concurso de infracções” em matéria criminal segundo um “critério de índole normativa e não naturalística”, de modo que ao “mesmo pedaço de vida” corresponda a punição por tantos crimes quantos os “tipos legais” que preenche, desde que ordenados à protecção de “distintos bens jurídicos”; (como, v.g., parece suceder no caso dos tipos de crime de “burla” e “falsificação de documentos”, e que tem sido objecto de variadas decisões, cfr., v.g., os Acs. do T.S.I. de 05.06.2003, Proc. n.º 76/2003; de 13.10.2011, Proc. n.º 534/2011; de 27.10.2011, Proc. n.º 584/2011; de 07.12.2011, Proc. n.º 123/2011; de 17.07.2014. Proc. n.º 304/2014; de 23.11.2017, Proc. n.º 810/2017; de 19.04.2018, Proc. n.º 116/2018; de 11.10.2018, Proc. n.º 716/2018; de 30.05.2019, Proc. n.º 453/2019; de 26.01.2022, Proc. n.º 145/2021; de 17.03.2022, Proc. n.º 1088/2019; e de 18.05.2023, Proc. n.º 60/2023; podendo-se também ver o Ac. de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. de Portugal n.º 3/92, de 30.10.1992, Diário da República, 1ª Série, n.º 251, pág. 5034 a 5036; e o n.º 8/2000, de 23.05.2000, Diário da República, 1ª Série, n.º 119, pág. 2309 a 2311).
Com efeito, não ficando a protecção de lesão – ou perigo de lesão – de bens jurídicos merecedores de tutela penal (totalmente) “esgotada”, (ou “consumida”), por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não ocorre violação do “princípio da necessidade das penas”, e, consequentemente, do referido “princípio do ne bis in idem”.
É que, sendo o “concurso de crimes efectivo”, (e não, meramente, “aparente”), a dupla penalização não viola o “princípio do ne bis in idem” porque as sanções que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, destinam-se, cada uma delas, a punir a violação de um “bem jurídico diferente”; (ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente “pessoal”).
Em ambos os casos, não se está em presença do “mesmo crime”, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer, de uma mesma “conduta naturalística”; (sobre o sentido e alcance do dito “princípio do ne bis in idem”, cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 03.06.2021, Proc. n.º 16/2021 e de 24.09.2021, Proc. n.º 66/2021, podendo-se também ver, Zhao Bingzhi e Shi Yan’an nos seus estudos “Concepção sobre o regime de resolução eficaz do conflito de competência penal inter-regional da China”, in “Administração”, n.º 63, pág. 209 a 254 e n.º 64, pág. 557 a 607; Chen Yongsheng in, “O Princípio ne bis in idem e a Resolução do Conflito de Competência Penal Inter-regional da China”, Graduate Law Magazine, n.º 1; Shan Changzong, Zhao Songling e Liu Benyong in, “Divisão da Competência Judicial Penal entre o Interior da China e a Região Administrativa Especial de Macau”, Estudos sobre o Direito Penal Inter-regional e a Cooperação Judiciária Penal da China, com coordenação de: Gao Mingxuan e Zhao Bingzhi, Law Press, Editora Zhongguo Fangzheng, 2000, pág. 129; Ramón Garcia Albero in, “Non Bis in Idem: Material e Concurso de Leyes Penales”; Henrique Salinas in, “Os limites objectivos do «Ne Bis In Idem»: e a estrutura acusatória no processo penal português”, Universidade Católica; e Inês F. Leite in, “Ne (idem) bis in idem”, Vol. I e II).
Dest’arte – e sem se olvidar as considerações que o Prof. Jorge A. F. Godinho tece no seu interessante estudo “Sobre a punibilidade do autor de um crime pelo branqueamento das vantagens dele resultantes”, onde, citando J. Figueiredo Dias, (“Sobre o estado actual da doutrina do crime”), afirma a prioridade do “problema” em Direito Penal face ao “sistema”, notando que “a justiça do caso deve sobrepor-se a considerações meramente sistemáticas nos raros casos onde a solução obtida pelo «sistema» se revelar injusta ou disfuncional à luz da teleologia político-criminal imanente ao próprio sistema”, considerando, também, que “O peso do «sistema» é grande em direito penal, mas não pode «esmagar» as concretas situações da vida – na espiral hermenêutica, o caso concreto continua a ser o ponto de partida e de chegada” – somos de opinião que, pelo menos, e de um modo geral, dúvidas (sérias) não existem de que o crime de “detenção de arma proibida” tem sido (unanimemente) entendido como um “crime de perigo comum”, (aliás, insere-se no Capítulo III, do Título IV da Parte especial do Código especialmente destinada a estes tipos de crimes), visando tutelar o “perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidades públicas”, (cfr., v.g., para além dos citados no Acórdão recorrido, o Ac. do então T.S.J.M. de 23.10.97 in, “Jurisprudência”, 1997, TII, pág. 1067 e do T.S.I. de 03.10.2003, Proc. n.º 204/2003, de 07.10.2004, Proc. n.º 218/2004, de 20.03.2014, Proc. n.º 67/2014, de 30.04.2015, Proc. n.º 298/2015, e deste T.U.I. de 07.02.2001, Proc. n.º 14/2000, podendo-se também ver, entre muitos, P. Ribeiro de Faria in, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 889 e segs.), tutelando o crime de “roubo”, como “crime complexo” que é, não só a “propriedade”, como a “liberdade”, a “integridade física” ou “moral”, e até a própria “vida da vítima”; (cfr., v.g., o Ac. do referido T.S.J.M. de 24.02.1999 in, “Jurisprudência”, 1999, Tomo 1, pág. 411, e o do T.S.I. de 05.02.2004, Proc. n.º 7/2004, de 07.10.2004, Proc. n.º 219/2004, de 11.05.2006, Proc. n.º 12/2006, assim como o deste T.U.I. de 11.10.2017, Proc. n.º 49/2017, podendo-se ainda ver, Manuel Leal-Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. IV, pág. 110 e segs.).
Com efeito, e na perspectiva das consequências advindas da “acção” ou “conduta” do agente, e ao lado dos chamados “crimes de lesão” ou “dano”, (que pressupõem um determinado “resultado material”, como v.g. ocorre com o crime de “homicídio”, “roubo” e de “ofensa à integridade física”), consagra também o nosso ordenamento jurídico-criminal “crimes de perigo”, onde não é exigível a verificação da lesão (efectiva) do bem jurídico em causa, consumando-se o ilícito com a mera probabilidade de tal lesão vir a ocorrer, ou seja, com a “mera existência de perigo ou risco de que tal venha a acontecer”, sendo, assim, (e por contraposição aos “crimes de dano”), crimes cuja consumação não requer a efectiva lesão do bem jurídico, e de que são exemplos sintomáticos, os existentes no âmbito da “circulação rodoviária”, “produção e comercialização de produtos alimentares e farmacêuticos”, “tráfico de armas” e de “estupefacientes”, etc…; (cfr., v.g., sobre a ligação entre as incriminações de perigo e os progressos da sociedade, após a “Revolução Industrial”, as “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial”, pág. 272 e segs.; Faria Costa, com muitas ênfase e análise histórica, no seu trabalho “O Perigo em Direito Penal”, podendo-se também ver Beleza dos Santos in, “Crimes de moeda falsa”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 66, n.º 2844, pág. 18; Eduardo Correia in, “Direito Criminal”, Vol. I, 1971, pág. 287 e 288; Cavaleiro de Ferreira in, “Direito Penal Português”, Vol. I, 1981, pág. 217; Figueiredo Dias in, “Direito Penal, Sumários”, pág. 146; J. Marques Borges in, “Dos crimes de perigo comum e dos crimes contra a segurança das comunicações: notas ao código penal, art. 253º a 281º”, Lisboa; P. Pinto de Albuquerque in, “O Conceito de Perigo nos Crimes de Perigo Concreto”, Direito e Justiça, Vol. VI, 1992, pág. 351 a 364; B. Mendoza in, “Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto”, Comares, 2001; J. Silva in, “A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais”, Revista dos Tribunais, 2002; U. Beck in, “Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade”, 2010; M. Kubiciel in, “Libertad, instituciones, delitos de peligro abstracto”, 2017; e, mais recentemente, D. Rocha Silveira e F. A. Fernandes in, “Acerca dos crimes de perigo abstrato-concreto na doutrina geral dos crimes de perigo”, Revista Ius et Veritas, n.º 62, 2021).
Como já notava H. Jescheck, (no seu “Lehrbuch des Strafrechts”), “o direito penal não só restringe a liberdade, mas também cria liberdade”, impondo-se, assim, a par das tradicionais soluções do sistema jurídico-penal – baseadas, fundamentalmente, na dualidade entre crime doloso de dano e crime negligente de dano, e sobretudo, com o “desenvolvimento económico”, “abertura social” e grande “disseminação da informação” ocorridas depois da Segunda Guerra Mundial – uma “antecipação da tutela dos bens jurídicos”, fazendo com que o legislador em razão desse “perigo” ou “risco”, (seja ele “concreto” ou “abstracto”), não aguarde pela sua consumação, (antecipando-se na salvaguarda dos bens jurídicos ameaçados), pois que só assim se considera possível assegurar que a comunidade ficará mais adequadamente protegida; (cfr., v.g., “Revue Internationale de Droit Pénal”, 1969, n.º 1 e 2; R. Mata e Martín in, “Bienes Jurídicos Intermédios y Delitos de Peligro”; e J. Maria Escrivá Gregori in, “La Puesta en Peligro de Bienes Jurídicos en Derecho Penal”, Barcelona, 1976).
Na verdade, e podendo-se definir “perigo” como a “potência de um fenómeno para ocasionar a perda ou diminuição de um bem”, adequado se mostra de concluir que com os “crimes de perigo” pretendeu o legislador antecipar a protecção penal para momentos anteriores à efectiva verificação do dano, ou seja, para o momento em que o (mero) perigo se manifesta.
O ponto crucial dos crimes de perigo reside no facto de que, muitas vezes, condutas cujo desvalor da acção é de pequena monta se repercutem, muitas vezes, num desvalor de resultado de efeitos amiúde catastróficos.
Daí, e em causa estando não o “dano”, mas sim, (e tão só), o “perigo do mesmo”, adequado é afirmar que os “crimes de perigo” são aqueles em que a sua actuação típica consiste unicamente em agir de modo a “criar perigo de lesão a bens jurídicos”, (não dependendo o preenchimento do tipo da efectiva ocorrência da lesão).
Por sua vez, constituindo “crime de perigo abstrato” aquele em que o perigo resultante da acção do agente não está individualizado em qualquer vítima ou bem, não sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo, (sendo o “perigo”, ou a “perigosidade da acção”, presumido “juris et de jure”), e “crime de perigo concreto” aquele em que o perigo resultante da acção do agente se encontra identificado, sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo, (surgindo como elemento típico, destacado da acção), cabe notar que o crime de “detenção de arma proibida”, (para além de ser um “crime de realização permanente”), é um “crime de perigo abstracto”, em que em causa está pois a própria “perigosidade da sua detenção”, (isto é, a “danosidade” ou “perigosidade inerente à própria arma”), visando-se tutelar com a sua incriminação o perigo de lesão da “ordem”, “segurança” e “tranquilidade públicas” face ao risco da livre circulação e detenção de armas.
E, assim, aqui chegados, e em face do que se deixou relatado, à vista se nos apresenta a solução a adoptar.
Com efeito, sendo diversos os “bens jurídicos” tutelados pelas (respectivas) normas incriminadoras relativas ao crime de “roubo” e de “armas proibidas” – cfr., artºs 204º e 262º do C.P.M. – e, não operando, (na situação em questão), qualquer dos fundamentos para se dar por verificado um “concurso aparente”, (em razão das atrás referidas regras da “consunção”, “especialidade” ou “subsidiariedade”), evidente nos parece que existe, pois, uma situação de “concurso efectivo” de infracções entre o crime de “roubo” (ainda que qualificado) e o de “detenção de arma proibida”, importando ponderar e ter presente que o crime de “roubo qualificado” pode ser cometido com a utilização de “qualquer” arma, mesmo que não “proibida”, contemplando apenas o crime previsto no art. 262º do C.P.M., o uso e porte de “armas proibidas”, pelo que decidindo-se pela prática de apenas um (só) crime de “roubo qualificado”, (porque cometido com arma proibida), algo parece ficar de fora, e que, no fundo, é o (verdadeiro) “núcleo essencial” da punição do tipo de crime do dito art. 262º.
Ademais, sendo este, como se disse, um “crime de perigo”, e como na situação do Acórdão recorrido ocorreu, o mesmo consuma-se logo que o agente passa a “deter” a “arma proibida”, integrando, o “uso material” (e “efectivo”) que dela venha a fazer – posteriormente – no crime de “roubo”, (e que tão só sucedeu momentos depois, após entrada em Macau e deslocação do posto de imigração até ao estabelecimento hoteleiro, “local do crime” de “roubo”), um ilícito “autónomo” e “independente” em relação àquele de “detenção de arma proibida”, (que, com a dita “detenção”, já se consumou).
Na verdade, sendo, como efectivamente se mostra dever ser, de se considerar que punindo-se com o crime de “detenção de arma proibida” o mero “perigo” do seu uso, sem se ter como destinatários uma “pessoa determinada”, (mas sim um “círculo de pessoas não determinadas”), apresenta-se-nos pois de considerar também que o funcionamento desse crime (ainda que) como “meio comissivo” do (posterior) crime de “roubo (qualificado)” – que apesar de proteger uma pluralidade de bens jurídicos de diversa natureza, (pessoal e patrimonial), atinge, tão só, interesses fundamentalmente privativos da concreta pessoa ofendida – não esgota o “perigo” (inerente à sua tipicidade de ofensa) com a sua detenção, em momento anterior, (e que já se consumou), a uma “pluralidade de bens jurídicos pessoais e patrimoniais de terceiros”, (ou seja, de “qualquer pessoa”, e não só das pessoas concretamente ofendidas com a prática do crime de “roubo”).
Igualmente, (e mutatis mutandis), o mesmo sucede com uma situação de “detenção de arma proibida” após de com a mesma se ter (anteriormente) cometido um crime de “roubo”.
Com efeito, e como cremos que sem esforço se alcança, a utilização da “arma proibida” no cometimento do crime de “roubo”, (e, assim, ainda que dando lugar à sua “qualificação”), não consome ou esgota o “perigo” que com a sua posterior “detenção”, (da mesma “arma proibida”), se atinge relativamente – não já à(s) vítima(s) do crime de “roubo” (já) perpetrado – mas a uma pluralidade de bens jurídicos de terceiros.
Não se olvida que em questão está, (em bom rigor, a busca de) uma solução que, de um lado, corre o risco de colidir como uma absolutamente injusta (e indesejável) “dupla punição do agente”, confrontando-se, por outro, com uma (igualmente) “indevida punição”, (excessivamente branda ou leniente), em consequência de eventual incorrecta valorização da “ilicitude global do facto”, havendo, pois, que se proceder e responder de forma a que esta seja objecto de total (e precisa e adequada) avaliação e apreciação.
Não se ignora igualmente que entendimentos existem – e que muito se respeitam – no sentido de que a “solução” a adoptar não se deve limitar a um mero resultado de uma “operação de contagem (ou mera soma) dos bens jurídicos ofendidos”, (pois que se pecaria, então, por excessiva abstracção da “verdade material”), não se podendo, (ou devendo), menosprezar uma análise (o mais) abrangente (possível), que em termos objectivos, substanciais e materiais, e de forma integrada, global e adequada, se aprecie e valorize “todo o significado (e relevância) da conduta” em questão; (sobre as “teorias da conduta no direito penal”, vd., v.g., Cláudio Brandão in, Revista de Informação Legislativa, n.º 148, pág. 89 e segs.; Gustav Radbruch in, “El concepto de acción y su importancia para el sistema del derecho penal”, Buenos Aires; Urs Kindhäuser in, “Acerca del concepto jurídico penal de acción”, Cuadernos de Derecho Penal, n.º 7, 2012, e, com muito interesse, Pedro Sá Machado in, “Teoria da conduta na realização jurisdicional do direito penal: pressupostos e fundamentos do comportamento ilícito-típico”, Coimbra, 2023, e ainda in “Teoria da conduta na doutrina do crime alemã”, Católica Law Review, Vol. VI, n.º 3, 2022).
Porém, tendo-se presente o que se deixou consignado, e sempre com o muito respeito devido ao Exmo. Magistrado Recorrente, não se mostra de sufragar o entendimento pelo qual o mesmo se bate com a presente lide recursória.
É que, (e como cremos que se viu e se deixou igualmente explicitado), a factualidade (relevante) que no Acórdão recorrido integra os crimes em questão não é “coincidente”, assumindo, os mesmos (crimes em causa) “relevância autónoma”, pois que o que aquela objectivamente retrata não se apresenta como um – só – acto ou conduta (“instantânea”), com “ligação temporal-espacial”, em que um dos crimes, (o de “arma proibida”) se esgota, (ou dissolve totalmente), no outro (de “roubo”), ocorrendo de forma “fortuita”, “súbita”, “repentina”, “ocasional”, ou “intrinsecamente inerente”; (como, v.g., poderia suceder, quando o agente, no meio de uma discussão, agressão ou “roubo”, se serve de uma “arma proibida” que por mero acaso se encontra no local para, com ela, “vencer” o argumento ou a resistência do ofendido; neste sentido, e referindo-se precisamente ao mero “emprego” da arma aquando do cometimento do crime de “roubo”, cfr., v.g., César Dario Mariano da Silva in, “Estatuto do Desarmamento: de acordo com a Lei n.º 10.826/2003”, 2ª ed., e Gilberto Thums in, “Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade, comentários por artigos (análise técnica e crítica)”, 2ª ed., Rio de Janeiro, 2005).
Com efeito, os “círculos de protecção” das normas incriminatórias e punitivas em confronto, não são, (em boa medida), “sobreponíveis”, e, muito menos, “concêntricos”, sendo de afirmar, (em face da situação concreta em questão), que o ilícito (dominado) de “detenção de arma proibida” não constitui uma conduta que se integra (totalmente) numa “unidade do acontecimento”, não havendo a necessária e imprescindível referida “conexão espácio-temporal”, ou mesmo, qualquer “justaposição” (ou “intercepção”) entre as condutas típicas punidas por ambos os crimes, não se verificando, assim, os pressupostos que justificariam, ao abrigo do “princípio do ne bis in idem”, a exclusão da possibilidade de uma dupla punição por uma ofensa ao mesmo bem jurídico; (neste sentido, cfr., ainda, v.g., Cuello Calón in, “Derecho Penal”, tomo II, 11ª ed., Barcelona, pág. 159 e 160, Faria Costa in, ob. cit., pág. 623, e entre muitos, o Ac. do S.T.J. de 10.09.2014, Proc. n.º 714/12, onde se considerou, nomeadamente que “Na base da incriminação qualificada do furto e do roubo em função de o agente trazer arma está a ideia de que “o potencial de superioridade de ataque que uma arma traz ao delinquente é, ninguém o desconhece, uma realidade indesmentível e indiscutível, o que tem como contrapartida uma clara diminuição da defesa que a vítima pode encetar”. Trata-se, pois, de um meio agravado de constrangimento da vítima para que proceda à entrega da coisa móvel. Mas, diferente é a incriminação subjacente ao disposto no art. 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006” – correspondente ao art. 262º do nosso C.P.M. – “dado que aqui se pune a detenção de arma proibida, (…), independentemente de a usar ou a deter aquando da prática de um crime. (…), o ilícito singular subjacente à detenção de arma proibida não é coberto, integralmente, pelo ilícito principal subjacente ao crime de roubo. Na verdade, tanto integra o crime de roubo a conduta de ameaças com detenção de arma proibida, como integra o crime de roubo a conduta de ameaças com detenção “legal” de arma. E o ilícito subjacente ao crime de detenção ilegal de arma é, em parte, independente daquele ilícito dominante subjacente ao crime de roubo”, podendo-se sobre a matéria ver também os Acs. do mesmo S.T.J. de 30.11.1983, Proc. n.º 37053, in B.M.J. 331º-345 com referência ao C.P. de 1886; de 30.01.1991, Proc. n.º 41.314, in C.J., Ano XVI, tomo I, pág. 12 a 17; de 15.12.1994, in C.J.S.T.J., Ano II, tomo III, pág. 263 e 264; de 30.10.1996, Proc. n.º 47385, in B.M.J. 460º-425; de 01.06.1999, Proc. n.º 98P1090; de 16.11.2006, Proc. n.º 06P2546; de 14.12.2006, Proc. n.º 06P4344; de 21.01.2016, Proc. n.º 214/10; de 16.02.2023, Proc. n.º 41/21, in “www.dgsi.pt”; assim como os Acs. do T.S.I. de 11.09.2003, Proc. n.º 154/2003; de 05.02.2004, Proc. n.º 7/2004; de 15.03.2007, Proc. n.º 61/2007; de 26.07.2007, Proc. n.º 280/2007; de 16.12.2008, Proc. n.º 662/2008; de 11.01.2018, Proc. n.º 1086/2017).
E, nesta conformidade, atenta a facticidade adquirida no Acórdão recorrido, e, especialmente, em face das já descritas circunstâncias de “tempo”, “modo” e “lugar”, assim como ponderado o quadro legal, doutrinal e jurisprudencial relevante, a “natureza” e “tipo” dos crimes em questão, os seus (respectivos) “objectos jurídicos” e “sujeitos passivos”, (ofendidos), visto cremos estar que, com a conduta em causa – ou seja, com a “posse das armas proibidas” aquando da entrada em Macau e sua posterior detenção durante o percurso até o estabelecimento hoteleiro onde, posteriormente, se veio a cometer o crime de “roubo agravado” pelo seu uso – incorreu-se na prática, em “concurso efectivo”, dos ditos crimes de “detenção de arma proibida” e de “roubo qualificado”, (tal como aí se decidiu), motivos não havendo para qualquer reparo, sendo assim de se confirmar a no Acórdão recorrido verificada e declarada (efectiva) “pluralidade de infracções”.
Aqui chegados, e em síntese conclusiva, mostra-se de consignar o que segue:
«1. Em sede da questão da “pluralidade de infracções” é comum distinguir diversos “tipos de concurso”.
2. Surge assim o “concurso legal”, “aparente” ou “impuro”, que corresponde à situação em que, inicial e abstractamente, a conduta do agente é susceptível de preencher vários tipos de crime, mas em que se vem a reconhecer após interpretação que, afinal, só “um” deles deve subsistir, em prejuízo dos demais, existindo, na realidade, um mero “concurso de normas” (que não está sequer previsto no citado art. 29º do C.P.M.), e em que apenas uma delas se aplica, sendo as demais afastadas por efeito das regras (de exclusão) da “especialidade”, (em que uma norma especial derroga a norma geral), da “consumpção”, (em que a concorrência de normas se estabelece entre um tipo legal mais grave e um tipo legal menos grave, sendo que a protecção dada pelo primeiro já absorve a dada pelo segundo), e da “subsidiariedade”, (que corresponde às situações em que a lei condiciona de forma expressa a aplicação de um preceito à não aplicação de uma outra norma mais grave).
O que em bom rigor acaba por suceder, é ter de se seleccionar uma “norma dominante” que acaba por esgotar (totalmente) o “desvalor” global da conduta do agente, fazendo a máxima protecção dos bens jurídicos ameaçados ou lesados, havendo, assim, uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes «efectivamente cometidos»”.
3. Diversa é a situação do “concurso efectivo”, (“verdadeiro”, “genuíno”, “próprio” ou “puro”), que ocorre quando se comete, (“efectivamente”), “mais do que um crime”, (quer através da mesma conduta, quer por meio de condutas diferentes), e em que há uma “pluralidade de acções típicas” – a cada uma delas correspondendo e sendo aplicável “uma pena” parcelar para posterior unificação jurídica, (ou “cúmulo jurídico” das diversas penas parcelares), de acordo com as regras estatuídas no art. 71º do C.P.M. – podendo-se, aqui, distinguir, o “concurso ideal”, que pode ser “homogéneo” ou “heterogéneo”, consoante, com uma só acção, ou conduta, se preenche o mesmo tipo mais do que uma vez, ou se preenchem diferentes tipos, e o “concurso real”, em que através de várias condutas se preenchem diversos tipos de ilícito.
4. O facto que lese ou afecte uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado e sancionado duas vezes, nada impedindo, porém, que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao “concurso de infracções” em matéria criminal segundo um “critério de índole normativa, e não naturalística”, de modo que ao “mesmo pedaço de vida” corresponda a punição por tantos crimes quantos os “tipos legais” que preenche, desde que ordenados à protecção de “distintos bens jurídicos”.
5. Com efeito, não ficando a protecção de lesão – ou perigo de lesão – de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada, (ou consumida) por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não ocorre violação do – “princípio da necessidade das penas”, e, consequentemente, do – “princípio do ne bis in idem”.
É que, sendo o “concurso de crimes efectivo”, (e não, meramente, “aparente”), a dupla penalização não viola o “princípio do ne bis in idem” porque as sanções que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, destinam-se, cada uma delas, a punir a violação de um “bem jurídico diferente”; (ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente “pessoal”).
6. O crime de “detenção de arma proibida” é um “crime de perigo comum”, visando tutelar o “perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidades públicas”, tutelando o crime de “roubo”, como “crime complexo” que é, não só a “propriedade”, como a “liberdade”, a “integridade física” ou “moral”, e até a própria “vida da vítima”.
Constituindo “crime de perigo abstrato” aquele em que o perigo resultante da acção do agente não está individualizado em qualquer vítima ou bem, não sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo, e sendo “crime de perigo concreto” aquele em que o perigo resultante da acção do agente se encontra identificado, sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo, cabe notar que o crime de “detenção de arma proibida”, (para além de ser um crime de realização permanente), é um “crime de perigo abstracto”, em que em causa está pois a própria “perigosidade da sua detenção”, visando-se, tutelar com a sua incriminação, o perigo de lesão da “ordem”, “segurança” e “tranquilidade públicas” face ao risco da livre circulação e detenção de armas.
7. Sendo diversos os “bens jurídicos” tutelados pelas (respectivas) normas incriminadoras relativas ao crime de “roubo” e de “armas proibidas” – cfr., artºs 204º e 262º do C.P.M. – e, não operando, (na situação em questão), qualquer dos fundamentos para se dar por verificado um “concurso aparente”, (em razão das referidas regras da “consunção”, “especialidade” ou “subsidiariedade”), existe, então, uma situação de “concurso efectivo” de infracções entre o crime de “roubo” (ainda que qualificado) e o de “detenção de arma proibida”, importando pois ter presente que o crime de “roubo qualificado” pode ser cometido com a utilização de “qualquer” arma, mesmo que não “proibida”, contemplando apenas o crime previsto no art. 262º do C.P.M., o uso (e porte) de “armas proibidas”, pelo que, decidindo-se pela prática de apenas um (só) crime de “roubo qualificado”, (porque cometido com o emprego de arma proibida), algo acaba por ficar de fora, e que, no fundo, é o (verdadeiro) “núcleo essencial” da punição do tipo de crime do dito art. 262º.
Ademais, sendo este um “crime de perigo”, o mesmo consuma-se logo que o agente passa a “deter” a “arma proibida”, integrando, o “uso material” (e “efectivo”) que dela venha a fazer posteriormente no crime de “roubo”, um ilícito “autónomo” e “independente” (em relação àquele que já se encontra consumado).
8. Na verdade, sendo de se considerar que punindo-se com o crime de “arma proibida” o mero “perigo” do seu uso, sem se ter como destinatários uma “pessoa determinada”, (mas sim um “círculo de pessoas não determinadas”), mostra-se-nos pois de considerar também que o funcionamento deste crime (ainda que) como “meio comissivo” do (posterior) crime de “roubo qualificado”, não esgota o “perigo”, inerente à sua tipicidade de ofensa, com a sua “detenção”, (e que já se consumou) em momento anterior, a uma “pluralidade de bens jurídicos pessoais e patrimoniais de terceiros”.
9. Assim, se a factualidade (relevante) que integra os crimes em questão de “roubo (agravado)” e “detenção de arma proibida” não é “coincidente”, pois que o que aquela objectivamente retrata não se apresenta como um – só – acto ou conduta “instantânea”, com “ligação temporal-espacial”, em que um dos crimes, (o de “arma proibida”) se esgota, (ou dissolve totalmente), no outro (de “roubo”), ocorrendo de forma “fortuita”, “súbita”, “repentina” e “ocasional”, (como, v.g., poderia suceder, quando o agente, no meio de uma discussão, agressão, ou, “roubo”, se serve de uma “arma proibida” que por mero acaso se encontra no local para, com ela, “vencer” o argumento ou a resistência do ofendido), impõe-se, então, afirmar, (em face da situação concreta em questão), que o ilícito (dominado) de “detenção de arma proibida” não constitui uma conduta que integra numa “unidade do sucesso ou acontecimento”, não se verificando, assim, os pressupostos que justificariam, ao abrigo do “princípio do ne bis in idem”, a exclusão da possibilidade de uma dupla punição por uma ofensa ao mesmo bem jurídico.
10. E, nesta conformidade, atenta a facticidade adquirida no Acórdão recorrido, e, especialmente, em face das já descritas circunstâncias de “tempo”, “modo” e “lugar”, assim como ponderado o quadro legal, doutrinal e jurisprudencial relevante, a “natureza” e “tipo” dos crimes em questão, os seus (respectivos) “objectos jurídicos” e “sujeitos passivos”, (ofendidos), visto cremos estar que, com a conduta em causa, ou seja – com a “posse das armas proibidas” aquando da entrada em Macau e sua posterior detenção durante o percurso até o estabelecimento hoteleiro onde, posteriormente, se veio a cometer o crime de “roubo agravado” pelo seu uso – incorreu-se na prática, em “concurso efectivo”, dos ditos crimes de “detenção de arma proibida” e de “roubo qualificado”».
Dest’arte, e outra questão não havendo apreciar, resta decidir como segue.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam:
- negar provimento ao presente recurso; bem como,
- uniformizar jurisprudência no seguinte sentido:
“Em face dos ‘bens jurídicos’ protegidos pelas normas incriminatórias dos tipos de crime de ‘roubo qualificado (pelo emprego de arma proibida)’ e de ‘detenção de arma proibida’, atentos os seus respectivos ‘sujeitos passivos’, (ofendidos), e se adquirido estiver que o arguido deteve e circulou com a referida ‘arma proibida’ em local público, vindo a cometer o crime de ‘roubo’ com o seu uso em momento posterior, ou que, após o cometimento do crime de ‘roubo’ (com o uso de ‘arma proibida’), manteve-se na sua posse, desta forma atingindo bens jurídicos não já da vítima daquele crime de ‘roubo’, mas de terceiros, adequada é a sua condenação como autor da prática em ‘concurso efectivo’ de tais crimes”.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Oportunamente, dê-se observância ao estatuído no art. 426º, n.º 1 do C.P.P.M..
Macau, aos 16 de Novembro de 2023
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Tong Hio Fong
Choi Mou Pan
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