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Processo n.º 69/2022
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
O Ministério Público interpõe para o Tribunal de Última Instância recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 248/2021, alegando que este acórdão está em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, com o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 580/2013.
Na tese do Ministério Público, em ambos os processos supra mencionados o Tribunal de Segunda Instância se pronunciou sobre a questão de saber se as sociedades comerciais que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau são “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo” para efeitos do artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e se os seus trabalhadores são equiparados ao funcionário, tendo proferido acórdãos em sentidos manifestamente opostos.
Por acórdão de 8 de Junho de 2022, este Tribunal de Última Instância determinou o prosseguimento do recurso, por se verificarem todos os pressupostos para o Tribunal de Última Instância proferir acórdão para fixação de jurisprudência.
O Ministério Público apresentou, nos termos do artigo 424.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, as suas alegações, entendendo que devia ser fixada jurisprudência no seguinte sentido:
“De acordo com a Lei n.º 16/2001, os respectivos despachos do Chefe do Executivo e os contratos de concessão, as sociedades que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau não são ‘sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo’ para efeitos do art.º 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e os seus trabalhadores não são equiparados ao funcionário.”
Tendo sido constituído o Colectivo, com a formação referida no n.º 2 do artigo 46.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, e corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentos
(1) Constata-se nos presentes autos o seguinte:
- Nos autos de recurso penal n.º 248/2021, o arguido foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base pela prática do crime de peculato p.p. pelo artigo 340.º, n.º 1 do Código Penal, conjugado com o artigo 336.º, n.º 2, al. c), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão. O arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, conhecendo do recurso, considerou que não era aplicável o conceito de funcionário, pelo que o arguido não devia ser punido pelo crime de peculato, convolando assim o crime de peculato para o crime de abuso de confiança.
No acórdão ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância deixou consignado que: “nos termos do artigo 7.º, n.º 2 da Lei n.º 16/2001, conjugado com o Despacho do Chefe do Executivo n.º 26/2002, a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino foi concedida a três empresas a partir de 8 de Fevereiro de 2002. Portanto, a Venetian Macau, S.A. não é a única sociedade comercial que explora jogos de fortuna ou azar em casino, não preenchendo o conceito de concessionária previsto no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal, e de modo igual, os trabalhadores das sociedades de jogos também não se enquadram no conceito de funcionário previsto no artigo 336.º do Código Penal”.
- Nos autos de recurso penal n.º 580/2013, o arguido foi acusado pelo Ministério Público da prática do crime de peculato p.p. pelos artigos 340.º, n.º 1 e 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e condenado pelo Tribunal Judicial de Base pela prática do crime de abuso de confiança p.p. pelo artigo 199.º do Código Penal. Interposto recurso para o Tribunal de Segunda Instância, este veio a entender que: “o recorrente dos presentes autos, como croupier de casino, deve ser equiparado ao funcionário nos termos do artigo 336.º do Código Penal de Macau, assim, os actos de furto por ele praticados no casino integram o crime de peculato p.p. pelos artigos 340.º, n.º 1 e 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal, de que foi acusado pelo Ministério Público”, pelo que convolou oficiosamente o crime de abuso de confiança para o crime de peculato.
No acórdão que serviu de fundamento do presente recurso (processo n.º 580/2013), o Tribunal de Segunda Instância citou a jurisprudência do acórdão do Processo n.º 260/2010, de 22 de Novembro de 2013, fazendo consignar no sumário o seguinte: “o regime de jogos regulado pela Lei n.º 16/2001 manteve o regime de exclusivo estipulado pela lei antiga (Lei n.º 6/82/M), sendo os seus trabalhadores equiparados ao funcionário por força do artigo 336.º do Código Penal”.
Assim, sobre a questão de saber se as sociedades que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau são sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo previstas no artigo 336.º n.º 2 al. c) do Código Penal e se os seus trabalhadores são equiparados ao funcionário, os dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância em causa tomaram decisões totalmente diferentes, tendo adoptado soluções opostas.
(2) No presente recurso põe-se a questão de saber se as sociedades comerciais que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau são sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo previstas no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e se os trabalhadores dessas sociedades são equiparados ao funcionário à luz da disposição supracitada.
Dispõe o artigo 336.º do Código Penal o seguinte:
1. Para efeitos do disposto no presente Código, a expressão funcionário abrange:
a) O trabalhador da administração pública ou de outras pessoas colectivas públicas;
b) O trabalhador ao serviço de outros poderes públicos;
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar ou colaborar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional.
2. Ao funcionário são equiparados:
a) O Governador e Secretários-Adjuntos, os Deputados à Assembleia Legislativa, os vogais do Conselho Consultivo, os magistrados judiciais e do Ministério Público, o Alto-Comissário contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa e os titulares dos órgãos municipais;
b) Os administradores por parte do Território e os delegados do Governo;
c) Os titulares dos órgãos de administração, de fiscalização ou de outra natureza e os trabalhadores de empresas públicas, de empresas de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, bem como de empresas concessionárias de serviços ou bens públicos ou de sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo.”
Ora, é evidente que o conceito de funcionário previsto no artigo 336.º do Código Penal é estabelecido exclusivamente para efeitos penais, que não equivale ao conceito de funcionário da Administração Pública em geral, diferenciando-se um do outro. Aquele tem um leque mais vasto do que este, incluindo “os trabalhadores da Administração Pública ou das demais pessoas colectivas públicas”, bem como outras pessoas expressamente previstas na lei.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau ora vigente, “Para efeitos do presente diploma consideram-se trabalhadores da Administração Pública os funcionários e agentes”.
À luz do artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal, “ao funcionário são equiparados” os titulares dos órgãos de administração, de fiscalização ou de outra natureza e os trabalhadores de “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo”.
No que diz respeito ao conceito de funcionário para efeitos penais, a doutrina entende que o mesmo assume-se “com carácter meramente normativo, e que não coincide, obviamente, com o conceito adoptado por diplomas extra-penais para fins administrativos, indo significativamente mais além desse específico círculo”. E salienta que, “tal alargamento da noção de funcionário para fins penais está intimamente ligado à ideia de função que não ao formalismo que anda associado à qualidade de agente administrativo, já que – e na opinião, por exemplo, de NÉLSO HUNGRIA – , ‘o conceito de funcionário público já não deriva do da autoridade, mas do de função pública, e por função pública se deve entender qualquer actividade do Estado que visa directamente à satisfação de uma necessidade ou conveniência pública’……”.1
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1 Manuel Leal-Henriques, Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau, Volume VI, 2018, pág. 392.
Está em causa nos presentes autos a questão de saber se as sociedades comerciais que obtiveram a concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau por força da Lei n.º 16/2001 e dos respectivos diplomas complementares (nomeadamente o Regulamento Administrativo n.º 26/2001) continuam a ser “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo”. Se a resposta for positiva, então os trabalhadores dessas sociedades “são equiparados ao funcionário”. Caso contrário, já não podem ser equiparados.
(3) Como se sabe, as actividades de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau têm uma longa história.
O Governo de Macau promulgou o Diploma Legislativo n.º 1496 em Julho de 1961, decidindo conceder, através de concurso público, a exploração dos jogos de fortuna ou azar já legalizadas a pessoas designadas. Uma companhia então recém-formada por comerciantes de Macau e Hong Kong candidatou-se e saiu vencedora, ficando permitida a explorar, em regime de exclusivo, casinos (e a venda das lotarias “Pou”, “Shan” e “Pacapio”). Esta nova sociedade concessionária foi registada em 1962, tendo adoptado a firma de Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (S.T.D.M., abreviadamente). Com a abertura do seu primeiro casino, o Casino Estoril, no mesmo ano, tal empresa deu o seu primeiro passo para os seus 40 anos dedicados à exploração, em exclusivo, de jogos de fortuna ou azar.
«A viabilidade da liberalização da indústria de jogo e as questões relativas à sua prática foram alvo de grande discussão e de estudos nas mais variadas perspectivas, até 1999. Na verdade, a Administração Portuguesa chegou mesmo a estudar e a preparar as vias para dar termo ao monopólio verificado quanto aos jogos de fortuna ou azar. Eis como exemplo a Lei n.º 10/86/M, aprovado pela Assembleia Legislativa em 1986, que limitava a três o número máximo de licenças a conceder.
……
Em Agosto de 2001, a Assembleia Legislativa de Macau aprovou a Lei n.º 16/2001, que define o “Regime Jurídico de Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar em Casino”, na qual se estipulam normas de princípio sobre o regime das concessões, os requisitos operacionais, o método adoptado para o concurso e as formas de exploração por parte das concessionárias, a idoneidade dos accionistas e do corpo administrativo, o imposto sobre os jogos, etc. Assim, o Governo da RAEM decidiu atribuir três contratos de concessão ao caducar o contrato de monopólio celebrado com a S.T.D.M., a 31 de Dezembro de 2001, para gerar uma nova dinâmica na indústria do jogo e criar condições sólidas para o seu futuro desenvolvimento reforçando, desta forma, a orientação política do Governo da Região Administrativa Especial de Macau: O turismo e os jogos como indústrias preponderantes, os serviços como sujeito e outros sectores como apoiantes, coordenando-se entre si, fomentam o desenvolvimento.
.……
Em 26 de Outubro de 2001, o Chefe do Executivo, Edmund Ho Hau Wa, assinou o Regulamento Administrativo n.º 26/2001, em complemento da Lei n.º 16/2001, no qual se estabelece a regulamentação do concurso público para a atribuição de concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, do contrato de concessão e dos requisitos de idoneidade e capacidade financeira das concorrentes e das concessionárias. Este regulamento definou concretamente o procedimento do concurso para a atribuição das concessões.
Às 24H00 do dia 31 de Dezembro de 2001, o contrato de exploração em exclusivo atribuído à S.T.D.M. foi prorrogado por mais 3 meses, uma vez que não foi possível concluir o processo de atribuição das novas concessões no prazo previsto.
A 8 de Fevereiro de 2002, o Governo da Região Administrativa Especial de Macau, anunciou os resultados do concurso, tendo as concessões sido atribuídas à Sociedade de Jogos de Macau (“SJM”) recém formada pela S.T.D.M., à Galaxy Casino, S.A. (“Galaxy”) e à Wynn Resorts (Macau) S.A. (“Wynn”). Os contratos de concessão celebrados entre o Governo e as concessionárias foram assinados nos dias 28 de Março e 24 e 26 de Junho, respectivamente. Em Dezembro desse mesmo ano, foi efectuada uma alteração ao Contrato de Concessão do Casino Galaxy S.A., na qual foi permitida à Venetian Macau S.A. (“Venetian”) explorar jogos de fortuna ou azar em Macau, mediante subconcessão. Na sequência da autorização da primeira subconcessão, a SJM e a Wynn vieram também a assinar contratos de subconcessão com a MGM Grand Paradise, S.A. (“MGM”) e a Melco PBL Jogos (Macau), S.A. (“Melco PBL”), respectivamente a 20 de Abril de 2005 e a 8 de Setembro de 2006.»2
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2 Cfr. as informações sobre a “História da indústria de jogos de Macau”, constantes da página electrónica da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos da RAEM, onde se fez um resumo sobre o “O Monopólio da Indústria do Jogo” e a “Liberalização do Jogo depois da Transição”.
Em suma, desde 1962, as actividades de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau têm sido exploradas pela “STDM” em regime de exclusivo, durante cerca de 40 anos.
Em 8 de Fevereiro de 2002, o Governo da RAEM anunciou o resultado do concurso público, concedendo o direito à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino a três empresas (posteriormente alargadas a seis empresas), pondo fim à exploração de jogos por uma única empresa.
(4) Actualmente o regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar na RAEM é definido pela Lei n.º 16/2001, a qual revogou a Lei n.º 6/82/M (alterada pela Lei n.º 10/86/M), que regulava o regime jurídico das concessões para exploração de jogos de fortuna ou azar no território de Macau.
De acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 6/82/M, “a exploração de jogos de fortuna ou azar é sempre condicionada a prévia concessão”, sendo que a prática de jogos de fortuna ou azar só é permitida nos locais e recintos afectos à sua exploração.
No que concerne ao regime das concessões, dispõe o artigo 5.º o seguinte:
“1. As concessões para exploração de jogos de fortuna ou azar podem ser efectuadas em regime de exclusivo ou de licença especial.
2. É de três o número máximo de concessões segundo o regime de licença especial.
3. …
4. …”
Por outro lado, “as concessões revestem a forma de contrato” (artigo 6.º, n.º 1).
Daí se vê que, a Lei n.º 6/82/M, alterada pela Lei n.º 10/86/M, estabelecia dois regimes distintos para as concessões, designadamente os de exclusivo e de licença especial, sendo que o número máximo de concessões segundo este último regime é de três.3
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3 De acordo com a versão da Lei n.º 6/82/M, antes das alterações, o número máximo de concessão segundo o regime de licença especial era de quatro.
É de notar que, o Governo de Macau nunca efectuou concessões em regime de licença especial. Antes pelo contrário, chegou a fazê-lo em regime de exclusivo, tendo concedido a exploração de jogos de fortuna ou azar à STDM, que era a única sociedade comercial detentora do direito à exploração de jogos.
Por outro lado, de acordo com o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 16/2001, alterada pela Lei n.º 7/2022, “o direito à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é reservado à Região Administrativa Especial de Macau, sujeitando-se a concessão prévia as demais entidades que explorem jogos de fortuna ou azar”.
Estipula o artigo 7.º da Lei n.º 16/2001 o seguinte:
1. O direito à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é reservado à Região Administrativa Especial de Macau e só pode ser exercido por sociedades anónimas nela constituídas, às quais haja sido atribuída uma concessão mediante contrato administrativo, nos termos da presente lei.
2. É de seis o número máximo de concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino.
3. São proibidas, a qualquer título, a oneração, a transmissão ou cessão, total ou parcial, para terceiro, do direito de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, ou ainda, a transmissão ou cessão parcial, para terceiro, dos direitos e obrigações legais no âmbito dos jogos de fortuna ou azar em casino constituídos para as concessionárias ou da sua posição contratual de concessão.”
Da conjugação das várias disposições legais acima transcritas resulta que, quer ao abrigo do regime antigo, quer ao abrigo do regime novo, o direito à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é atribuído pelo Governo de Macau, através de concessão, a sociedades constituídas em Macau, distinguindo-se apenas quanto ao regime das concessões.
Diferentemente do que acontecia com a Lei n.º 6/82/M, a Lei n.º 16/2001 não prevê de forma expressa vários regimes distintos de concessão, nem faz referência ao regime de exclusivo ou de licença especial, estabelecendo apenas que a concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é feita mediante contrato administrativo, nos termos da Lei n.º 16/2001, e que o número máximo de concessões é de seis4.
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4 De acordo com a versão da Lei n.º 16/2001 antes das alterações, “é de três o número máximo de concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino”.
Ora, será que no novo regime de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, continua a seguir o modelo tradicional de concessão em regime de exclusivo?
No que respeita à Lei n.º 16/2001, o Governo da RAEM deixou consignado na Nota Justificativa da Proposta da Lei o seguinte:
«Anteriormente à Lei n.º 6/82/M, a sede principal do regime jurídico das concessões, para a exploração dos jogos de fortuna ou azar constava do Diploma Legislativo n.º 1496, de 4 de Julho de 1961, que regulamentou o estabelecimento de jogos de fortuna ou azar em Macau, alterado posteriormente pelo Diploma Legislativo n.º 1649, de 5 de Dezembro de 1964.
O Diploma Legislativo n.º 1496, de 4 de Julho de 1961, determinava, no artigo 5.º que “a concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar efectuar-se-á em regime de exclusivo e mediante concurso público, limitado ou não, conforme for julgado mais vantajoso aos interesses do turismo e da província, a empresas legalmente constituídas e de garantido crédito, ou a entidades de reconhecida solvabilidade”.
O texto daquele artigo 5.º, conjugado com o do artigo 2.º, do mesmo diploma legal, que estipulava que “a partir de 1 de Janeiro de 1965, a prática de jogos de fortuna ou azar só será permitida no casino ou casinos que na Província vierem a construir-se, podendo, até ao dia anterior àquela data, fazer-se uso dos edifícios e locais que, para tal fim, e mediante oportuna aprovação do Governador da Província, vierem a ser destinados pelo concessionário” e veio esclarecer no ordenamento local a natureza da concessão de jogos de fortuna ou azar que foi confirmada e reafirmada pela Lei n.º 6/82/M.
Isto é, que a actividade da exploração de jogos de fortuna ou azar era admitida não como uma actividade económica privada, mas antes, e em consequência, como uma reserva de iniciativa económica pública; reserva todavia relativa, já que se admite que a exploração dos jogos de fortuna ou azar seja prosseguida, através do regime do contrato administrativo de concessão, por particulares.
O legislador de 1961 determinou ainda outro aspecto nuclear do regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar: “a concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar efectuar-se-á em regime de exclusivo”.
Esta opção foi mantida pela Lei n.º 6/82/M, ainda que, igualmente, tenha aberto a possibilidade das concessões serem efectuadas em regime de licença especial, modalidade que nunca chegou a conhecer execução. Assim, em Macau, a concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar efectua-se, desde o Diploma Legislativo n.º 1496, em regime de exclusivo.
Com o aproximar do termo da vigência do presente contrato de concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar em regime de exclusivo, entende o Governo que os superiores interesses da Região no sector justificam que se proceda a uma revisão da disciplina legal que permita introduzir as alterações que possam garantir no futuro um desenvolvimento continuado e sustentado da indústria do jogo na Região.
É esse o sentido do novo regime jurídico que é agora apresentado e proposto pelo Governo da Região.
Um dos aspectos inovadores do novo regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar é a liberalização introduzida no sector, colocando-se um fim ao regime de exclusivo que até agora tem caracterizado a exploração da indústria dos jogos de fortuna ou azar em Macau.»5
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5 Cfr. a Nota Justificativa da Proposta da Lei n.º 16/2001 constante da página electrónica da Assembleia Legislativa.
Ao fazer a apresentação da proposta da lei na Assembleia Legislativa, o então Secretário para a Economia e Finanças afirmou também que, no novo regime jurídico, foi introduzida “uma nova inovação, que é cessar a exclusividade de jogos de fortuna ou azar e introduzir um novo conceito de abertura do mercado”.6
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6 Diário da Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau, Série I, n.º 16/2001, págs. 9 e 10.
A Comissão eventual para a apreciação da proposta de Lei relativa ao Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar emitiu o parecer, afirmando que “acolhe as razões apresentadas pelo Governo para justificar a alteração do regime jurídico da exploração dos jogos de fortuna ou azar”, referindo que “o sector do jogo local vive um momento decisivo na sua evolução, para o qual contribuem diversos factores”, um dos quais é “o esgotamento do modelo tradicional de exploração do sector, baseado num exclusivo de exploração”, e reiterando que “um dos aspectos inovadores do novo regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar é a liberalização introduzida no sector, colocando-se um fim ao regime de exclusivo que até agora [e desde 1961] tem caracterizado a exploração da indústria dos jogos de fortuna ou azar em Macau”.
Daí se constata que, através da Lei n.º 16/2001, o legislador introduziu um novo regime jurídico para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau, tendo actualizado e modernizado o quadro jurídico anteriormente vigente, com o intuito de alterar o modelo tradicional já desactualizado da exclusividade, libertar o mercado e introduzir concorrência, para garantir o desenvolvimento sustentável e constante da indústria do jogo.
O legislador deixou claro que uma das alterações do novo regime jurídico consiste em acabar com o regime de exclusivo que tinha sido aplicado para a exploração de jogos de fortuna ou azar em Macau.
De notar que, nos contratos anteriormente assinados com a STDM, tem sido utilizada a expressão de concessão do “exclusivo” dos jogos de fortuna ou azar, deixando claro que era em “regime de exclusivo” que a sociedade explorava os jogos em Macau.7
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7 Cfr. as alterações e os aditamentos ao contrato de concessão do exclusivo dos jogos de fortuna ou azar que o governo e a STDM acordaram, publicados no B.O. de Macau n.º 17, 2º suplemento, de 28/04/1976, B.O. de Macau n.º 3, de 15/01/1983, B.O. de Macau n.º 41, de 13/10/1986, B.O. de Macau n.º 3, de 19/01/1987, B.O. de Macau n.º 31, II série, de 30/07/1997 e no B.O. da RAEM, n.º 2, II série, de 12/01/2000.
No entanto, nos contratos de concessão da exploração de jogos celebrados entre a RAEM e as três concessionárias (“SJM”, “Galaxy” e “Wynn”) em Março e Junho de 2002 respectivamente, o termo “exclusivo” deixou de ser utilizado e não se vê qualquer cláusula respeitante ao “exclusivo”.8
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8 Cfr. os contratos de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar, celebrado entre a RAEM e as concessionárias, publicados no B.O. da RAEM, n.º 14, II série, suplemento, de 03/04/2002, e B.O. da RAEM n.º 27, II série, suplemento, de 03/07/2002.
Por outro lado, nos respectivos contratos celebrados entre a RAEM e a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau, S.A., e a Companhia de Corridas de Galgos Macau (Yat Yuen), S.A., tem sido adoptada a expressão de contrato de concessão do exclusivo9, o que demonstra que em termos de corridas de cavalos e galgos, o respectivo direito à exploração continua a ser concedido em regime de exclusivo.
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9 Cfr. os respectivos contratos de concessão e de prorrogação do prazo da concessão, entre os quais, escreve-se expressamente, no extracto da Prorrogação do contrato de Concessão para a Exploração, em Regime de Exclusivo, das Corridas de Galgos, publicado no B.O. da RAEM, n.º 6, II série, de 08/02/2017, que, a RAEM e a Companhia de Corridas de Galgos Macau (Yat Yuen), S.A. acordaram na prorrogação do contrato de concessão para a Exploração, em Regime de Exclusivo, das Corridas de Galgos, com início em 1 de Janeiro de 2017 e termina em 20 de Julho de 2018; os contratos da prorrogação do prazo e alteração do contrato de concessão do exclusivo da exploração de corridas de cavalos publicados no B.O. da RAEM, n.º 3, II série, de 16/01/2019, B.O. da RAEM n.º 15, II série, de 11/04/2018, B.O. da RAEM n.º 36, II série, de 6 de Setembro de 2017, B.O. da RAEM n.º 39, II série, de 30/09/2015, B.O. da RAEM n.º 36, II série, de 07/09/2005 e no B.O. da RAEM n.º 36, II série, de 08/09/2004.
Daí resulta que, na exploração dos jogos (corridas de cavalos e galgos) na RAEM, continua a ser aplicado o modelo de concessão do exclusivo, sendo que o regime de exclusivo está expressamente mencionado no respectivo contrato.
Então, qual será a situação de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino?
(5) No acórdão ora recorrido proferido no Processo n.º 248/2021 ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que, no novo quadro jurídico, uma vez que a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino foi concedida a três empresas, as respectivas concessionárias já “não são sociedades que exploram em exclusivo os jogos de fortuna ou azar em casino, não se mostrando enquadráveis no conceito de sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo previsto no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal”. Por outras palavras, o exclusivo implica a “exploração monopolista”, ou seja, a exploração é exclusivamente efectuada por uma única empresa.
E no acórdão do Processo n.º 580/2013 que serve de fundamento ao recurso (e nos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Processos n.os 260/2010 e 1009/2018, referidos pelo Ministério Público, que seguiram a mesma jurisprudência), o Tribunal de Segunda Instância adoptou uma solução diferente, afirmando que o número das licenças de concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar não é factor decisivo para determinar se a concessionária é uma sociedade que explora actividades em regime de exclusivo e a emissão de mais de uma licença não implica que a exploração de jogos tenha entrado numa verdadeira liberalização; ora, não havendo liberalização, a natureza do exclusivo mantém-se.
Antes de mais nada, é necessário esclarecer o conceito de exclusivo.
Está em causa saber se a referência a “exclusivo” implica uma concessão que envolva um regime de monopólio de direito.
Para Diogo Freitas do Amaral10, “(…) a exploração do jogo é objecto de uma concessão por parte de uma pessoa colectiva de direito público. O particular fica com o direito de exercer uma actividade que lhe estava vedada, isto é, fica senhor de um exclusivo. (...)”
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10 Diogo Freitas do Amaral, Estudos de Direito Público e Matérias Afins, Volume I, O Caso do Tamariz, pág. 418.
Neste sentido, o exclusivo referir-se-ia, portanto, ao facto de estar em causa uma actividade legalmente reservada ao Estado por contraposição a uma actividade económica de livre acesso e desenvolvimento por particulares.
No mesmo sentido, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro apontam que “Se o Estado se reserva o exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar e a concede, depois, a empresas a quem exige especiais qualificações de idoneidade, retirando, do facto, benefícios vários, é porque tal exploração, nesses moldes, tem interesse público, visa um fim público ou redunda em atribuição do ente público. (...)”11
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11 Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, Das Concessões de Zonas de Jogo, pág. 64, apud Diogo Freitas do Amaral e Lino Torgal, Estudos sobre Concessões e outros Actos da Administração, Concessão de exploração dos jogos de fortuna ou azar: da prorrogação do prazo e outras alterações do contrato, pág. 534.
Donde se poderia concluir que existiria exclusivo sempre que o particular ficasse com o direito de exercer uma actividade que anteriormente lhe estava vedada, sem prejuízo da maior ou menor especificidade da concessão em causa.
Esta interpretação, na verdade, acaba por reconduzir e diluir o “regime de exclusivo” no conceito de concessão em sentido técnico, isto é, a habilitação de um privado ao exercício temporário de uma actividade de interesse público.12
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12 Diogo Freitas do Amaral e Lino Torgal, Estudos sobre Concessões e outros Actos da Administração, Concessão de exploração dos jogos de fortuna ou azar: da prorrogação do prazo e outras alterações do contrato, págs. 533 e 534.
Em suma, para efeitos penais seriam equiparados a funcionários públicos os trabalhadores das sociedades que explorassem (mediante concessão) uma actividade de primacial interesse público.
Porventura, será esta a interpretação que melhor se adequa à intenção do legislador quando configurou a disposição contida na alínea c) do n.º 2 do artigo 336.º do Código Penal, visto que geralmente as concessões de maior “interesse público” eram feitas em regime de exclusivo13.
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13 Na RAEM pode constatar-se essa situação, por exemplo, dos artigos 2.º e 23.º da Lei n.º 3/90/M ou do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/81/M (já revogado). Nesse sentido, também, Marcello Caetano dizia “No acto de concessão inclui-se, por via de regra, a garantia dada ao concessionário do exclusivo da exploração da actividade concedida.” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, pág. 1121).
Surgem-nos, no entanto, fundadas reservas quanto à sua admissibilidade em face dos princípios da legalidade e da tipicidade.
É certo que se poderia alegar que Marcello Caetano, em termos semelhantes a Diogo Freitas do Amaral, distingue o exclusivo do serviço14 (na medida em que dizia respeito a uma actividade económica reservada ao Estado) do monopólio legal ou de direito15.
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14 Marcello Caetano referia-se aos serviços públicos, mas é questão que é inteiramente transponível às demais concessões.
15 Dizia Marcello Caetano: “Quanto aos serviços económicos o mais frequente é a atribuição de exclusivo ao serviço, isto é, a proibição do exercício do mesmo tipo de actividades aos particulares.
Quando o serviço público vive em concorrência é lícito à iniciativa privada exercer a mesma actividade. (...)
O exclusivo distingue-se, em rigor, do monopólio legal ou de direito que consiste num exclusivo absoluto de produção ou de comércio de determinada mercadoria com proibição, imposta sob a cominação de sanções penais, a outrem que não o monopolista, de exercer as mesmas operações produtivas ou mercantis, seja a que título e com que destino for. (...)
O monopólio legal é, regra geral, genérico, compreendendo todos os processos de exercício da actividade monopolista e em toda a área onde esta deva ser exercida.
Pelo contrário a regra é a de que o exclusivo seja específico: o serviço público de transporte ferroviário só abrange esse meio de transporte (viação sobre carris) embora possa utilizar qualquer motor (máquina a vapor, a óleos pesados, eléctrica...), não compreende outros meios de transporte colectivo, e deixa liberdade aos meios individuais. E pode ainda ser mais especificado – transporte ferroviário com motor eléctrico – o que já não abrangeria outras formas de energia motriz.” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 10.ª edição, págs. 1075, 1077 e 1078)
No entanto, não se pode perder de vista que nessa ocasião, ressalvando sempre melhor entendimento, Marcello Caetano examinava um problema que se colocava num patamar distinto: o facto dos serviços económicos que podem ser levados a cabo pelo Estado (ou Governo) constituírem na generalidade dos casos, por força da lei, um exclusivo do Estado (ou Governo), ao invés de actividades sujeitas às regras da livre concorrência, o que não obsta que o Governo conceda a sua exploração a terceiros.
Não estava aí em causa, propriamente, o regime jurídico-económico de uma concessão.
Assim se explica que o mesmo Autor entenda que a atribuição de um regime de exclusivo envolvia necessariamente um monopólio de direito na exploração de determinada actividade económica.
Com efeito, a propósito do “exclusivo nas concessões”, Marcello Caetano afirma expressamente que “No acto de concessão inclui-se, por via de regra, a garantia dada ao concessionário do exclusivo da exploração da actividade concedida. Essa garantia toma a forma de uma obrigação assumida pelo concedente de não consentir a mais ninguém o exercício da actividade que haja sido objecto da concessão.”16 (sublinhados nossos)
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16 Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 10.ª edição, pág. 1121.
De forma ainda mais cristalina e sem oferecer margem para dúvidas, Marcello Caetano sustenta que “O regime jurídico -económico da concessão é o monopólio de direito (designado, nas nossas leis administrativas e nos contratos, por exclusivo, ou privilégio exclusivo).” 17 (sublinhado nosso)
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17 Marcello Caetano, Estudos de Direito Administrativo, O Exclusivo da Carris de Ferro de Lisboa e as Cooperativas de Transportes Urbanos, pág. 56.
Por isso, não se pode confundir o facto de uma actividade económica ser reservada por lei ao Estado (ou Governo) – e, nesse sentido, exclusiva – com o facto de o Estado (ou Governo) atribuir a exploração de uma actividade económica “em regime de exclusivo”.
Tendo citado e ponderado nas diferentes posições dos autores supracitados e os diferentes entendimentos adoptados pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a respectiva questão, inclinamo-nos a entender que o “exclusivo” da indústria dos jogos de fortuna ou azar em casino de Macau vai no sentido de exploração monopolista.
Segundo a Wikipédia, o exclusivo refere-se geralmente à exploração exclusiva de certas actividades por empresários autorizados pelo Governo, que por sua vez garante que não haja concorrentes na respectiva área através de meios legislativo ou administrativo, desde que o nível dos serviços e dos lucros das concessionárias seja controlado pelo Governo.
É certo que há quem entenda que o exclusivo se refere à obrigatoriedade de concessão de certa actividade pelo Governo, a qual pode ser explorada em exclusivo por várias empresas, porém, da história da evolução da indústria do jogo em Macau resulta que a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino pertencia sempre a uma única empresa em regime de exclusivo durante 40 anos, pelo que aos olhos de homem comum, o exclusivo de jogos de fortuna ou azar em casino significa exploração monopolista.
Nos termos do artigo 8.º, n.º 3 (Interpretação da lei) do Código Civil, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Com base nas considerações supramencionadas, entendemos que o termo “exclusivo” utilizado na letra da Lei n.º 6/82/M se refere ao monopólio de exploração por uma única empresa, e não à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino por várias sociedades mediante autorização especial do Governo.
Entretanto, no decorrer de apresentação e apreciação da Proposta da Lei n.º 16/2001, quer os representantes do Governo, quer os deputados à Assembleia Legislativa, ao se referirem à cessação do exclusivo (em particular, à extinção do “regime de exclusivo que tinha sido adoptado na exploração de jogos de fortuna ou azar em Macau”), tinham conhecimento perfeito do sentido de “exclusivo”, isto é, cessar o exclusivo significa extinguir o monopólio da exploração dos jogos de fortuna ou azar em casino por uma única empresa e introduzir concorrência, para se adaptar às mudanças sociais e garantir o desenvolvimento contínuo e constante da indústria dos jogos na RAEM.
Por outro lado, no quadro da lei antiga, o artigo 5.º da Lei n.º 6/82/M previa dois regimes distintos de concessões, o de exclusivo e o de licença especial; segundo o regime de licença especial, o número máximo de concessões era de três.
Daí que, o regime de exclusivo é distinto do regime da licença especial.
Se o legislador fixou o número máximo de concessões segundo o regime de licença especial, mas nada estipulou quanto ao exclusivo, e o Governo de Macau tinha vindo a conceder a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino a uma única sociedade, é de extrair a conclusão de que o modelo de exclusivo que tinha sido adoptado em Macau e no entendimento do legislador e do Governo, é o de exploração monopolista.
A entender-se que o número das concessões não é factor decisivo para determinar se se tratar do exclusivo, ou dito doutro modo, a entender-se que a concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino a mais de uma sociedade não prejudica a sua natureza de exclusivo, já não faria sentido que o legislador tivesse previsto dois regimes distintos de concessões no artigo 5.º da Lei n.º 6/82/M, já que, mesmo no regime de exclusivo, o direito à exploração também podia ser concedido a sociedades diferentes, não valendo a pena estabelecer o regime de licença especial.
Dispõe o artigo 1.º da Lei n.º 14/96/M que “as concessionárias de obras públicas, de serviços públicos e de exploração de jogos de fortuna ou azar, de lotarias instantâneas e, ainda, de actividades em regime de exclusivo” são obrigadas a publicar anualmente o balanço, o relatório da administração ou gerência e o parecer do conselho fiscal ou de auditor.
A nosso ver, foi justamente porque o artigo 5.º da Lei n.º 6/82/M previa dois regimes diferentes de concessões que o legislador pôs lado a lado as concessionárias que “explorem jogos de fortuna ou azar” e as concessionárias que “exploram actividades em regime de exclusivo”. A concessão em regime de licença especial exclui necessariamente o regime de exclusivo.
Embora o Governo de Macau nunca tenha concedido a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino em regime de licença especial, certo é que, partindo da perspectiva jurídica, o legislador facultou essa possibilidade, podendo o Governo adoptar esta forma ao invés do regime de exclusivo.
De forma semelhante, se a lei prevê que a exploração das lotarias instantâneas “pode ser concedida em regime de exclusivo” (artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 12/87/M), vindo ainda a dizer-se no respectivo preâmbulo que se considera que com esta lei “a exploração de lotarias instantâneas passa a poder ser concedida em regime de exclusivo ou não, enquanto antes apenas se previa a primeira modalidade de concessão”, acabaria por afigurar-se contraditório sustentar que, afinal, está em causa uma actividade “em regime de exclusivo” por estar dependente de uma concessão18.
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18 Note-se, aliás, que ainda recentemente o Governo da RAEM nomeou o seu delegado junto da Sociedade de Lotarias Wing Hing, Limitada (Despacho do Chefe do Executivo n.º 10/2022) ao abrigo do contrato de concessão e do já mencionado Decreto-Lei n.º 13/92/M, situação que não se verifica junto das Sociedades concessionárias de jogos de fortuna ou azar.
O artigo 2.º da Lei n.º 3/90/M, que estabelece as Bases do Regime das Concessões de Obras Públicas e Serviços Públicos em Macau também se refere ao regime jurídico-económico da concessão ao definir as concessões nos seguintes moldes:
“a) Por concessão de obras públicas, a transferência para outrem do poder de construir, por sua conta e risco, imóveis ou instalações destinadas ao uso público, mediante o direito de as explorar em exclusivo;
b) Por concessão de serviços públicos, a transferência para outrem do poder de, em exclusivo, explorar, por sua conta e risco, os meios adequados à satisfação de uma necessidade pública individualmente sentida.”
Em todas estas situações as leis parecem referir-se à exploração jurídico-económica da concessão: atribuição ou não de um monopólio de direito.
De resto, poderia dizer-se que a diluição da exploração “em regime de exclusivo” no conceito de concessão não responderia satisfatoriamente às diferentes situações que se verificam nas concessões da RAEM.
Por exemplo, do número um da cláusula primeira constante do antigo contrato de concessão da exploração de corridas de galgos em Macau entre o Governo e a Companhia de Corridas de Galgos Macau (Yat Yuen) SARL resultava que “A Companhia de Corridas de Galgos «Macau (Yat Yuen), Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada», …, mantém a concessão em regime de exclusivo, da exploração de corridas de galgos de Macau, sob o sistema de lotarias e apostas mútuas, nos termos e com as condições estabelecidas no presente contrato que entra em vigor em um de Janeiro de mil novecentos e oitenta e seis.”
De forma semelhante, também resulta do contrato de concessão celebrado entre o Governo e a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau S.A.R.L. que “O Território de Macau concede à Companhia de Corridas de Cavalos de Macau, S.A.R.L., o exclusivo da exploração de corridas de cavalos, com as condições e nos termos estabelecidos neste contrato.”
Igualmente, na cláusula primeira do contrato de concessão celebrado com a Sociedade de Lotarias Wing Hing, Limitada, é dito que “A Sociedade de Lotarias Wing Hing, Limitada, mantém a concessão, em regime de exclusivo, da exploração no Território de Macau de Lotarias Chinesas, nos termos e com as condições estabelecidas no presente contrato.” 19
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19 Cfr. o extracto da revisão do contrato de concessão, em regime de exclusivo, publicado no Boletim Oficial de Macau, n.º 39, de 24 de Setembro de 1990.
Ao passo que no Contrato que liga a RAEM à Sociedade de Lotarias e Apostas Mútuas de Macau, Limitada já se diz no número um da sua Cláusula Primeira que “Pelo presente contrato, a Região Administrativa Especial de Macau concede, em regime de não exclusivo, à Concessionária a organização e exploração de Lotarias Instantâneas e das Lotarias Desportivas – Apostas de Futebol e Basquetebol.”20
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20 Cfr. a alteração ao contrato de concessão de exploração de lotarias instantâneas, publicada no Boletim Oficial da RAEM, n.º 23, II Série, Ano 2021. Inicialmente foi dado “em regime de exclusivo”, conforme se pode comprovar pela leitura do número um da cláusula primeira do contrato outorgado em 21 de Fevereiro de 1989, segundo o qual “o Território concede, em regime de exclusivo, à Concessionária a organização e exploração no território de Macau de lotarias instantâneas.”.
A entender-se o exclusivo como reportando-se ao facto de ser uma actividade reservada ao Governo e dependente de uma concessão, teria de concluir-se que não haveria diferença substancial para efeitos penais entre uma concessão em regime de exclusivo e uma concessão em regime de não exclusivo, o que poderia afectar o princípio da unidade do sistema jurídico que é exigido no âmbito da interpretação pelo artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil.
Sem desenvolvimentos mas notando estas diferenças no regime jurídico-económico das concessões, Manuel Leal-Henriques considera que a lei prevê a “exploração em regime de exclusivo” com intenção de proteger os interesses dos consumidores, de assegurar uma melhor exploração das actividades ou de acautelar o interesse público e acaba por dizer que a situação prevista na parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 336.º do Código Penal “acontece, por exemplo, com a exploração de lotarias ou de corridas de galgos”, omitindo qualquer referência às concessionárias de jogos de fortuna ou azar.21
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21 Manuel Leal-Henriques, Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau, Volume VI, 2018, págs. 400 e 401.
Após a ponderação sintética, somos a entender que, através da Lei n.º 16/2001, o legislador introduziu alterações ao regime de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau, sendo que uma das reformas mais significativa foi acabar com o modelo tradicional de “exclusivo”, razão pela qual, no quadro desta Lei (e das outras legislações relevantes), a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino deixou de ser concedida em regime de exclusivo e as concessionárias deixaram de explorar os jogos em regime de exclusivo, não constituindo, jamais, “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo” previstas no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal.
Nesta conformidade, os trabalhadores das concessionárias deixam de ser equiparados ao funcionário.
(6) O caso concreto
No acórdão do processo n.º 248/2021 ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância, tendo apreciado o recurso interposto pelo arguido, veio a entender que devido à inaplicabilidade do conceito de funcionário, o arguido não podia ser punido com o crime de peculato previsto pelo artigo 340.º, n.º 1 do Código Penal, conjugado com o artigo 336.º, n.º 2, al. c) do mesmo Código, pelo que convolou oficiosamente a condenação para dois crimes de abuso de confiança de valor consideravelmente elevado p. e p. pelo artigo 199.º, n.º 4, al. b) do Código Penal e dois crimes de abuso de confiança de valor elevado p. e p. pelo artigo 199.º, n.º 4, al. a) do Código Penal, mantendo inalterada, porém, a pena de prisão de 3 anos e 6 meses aplicada ao arguido pelo Tribunal Judicial de Base.
É de manter a decisão respeitante à qualificação jurídica dos factos ilícitos.22
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22 Não cabe apreciar as penas concretamente aplicadas (artigo 390.º, n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal).
3. Decisão
Face ao exposto, em conferência, acordam em:
A) Conceder provimento ao recurso e, nos termos do artigo 427.º do Código de Processo Penal, fixar a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da RAEM:
«Ao abrigo da Lei n.º 16/2001 (e dos respectivos Despachos do Chefe do Executivo bem como dos contratos de concessão), as sociedades concessionárias de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino da RAEM não são “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo”, para efeitos do artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e os seus trabalhadores não são equiparados ao funcionário.»
B) Manter o acórdão recorrido.
C) Ordenar o cumprimento do disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal.
Sem custas.
15 de Fevereiro de 2023
Juízes: | Song Man Lei (Relatora) | |
José Maria Dias Azedo | (Subscrevi o entendimento assumido no Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado no Autos de Recurso Penal n.º 580/2013. | |
Reponderando os argumentos apresentados a favor das posições em confronto, e não perdendo de vista a natureza e efeitos da “questão”, acompanho o decidido no douto Acórdão que antecede.) | ||
Sam Hou Fai | ||
Tong Hio Fong | ||
Choi Mou Pan | (Apesar de ter assumido a posição contida na decisão de fundamento, com a reponderação das questões levantadas no presente recurso, decido a alterar a posição anterior e adiro nos fundamentos e na decisão agora tomada do presente colectivo.) |
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