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1. Relatório
O Ministério Público interpõe para este Tribunal de Última Instância recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 928/2020, alegando que este acórdão está em oposição com o acórdão também do Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal que aí correram termos sob o n.º 540/2010, relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
Na tese do Ministério Público, em ambos os processos supra mencionados o Tribunal de Segunda Instância se pronunciou sobre a questão de saber se a pena acessória única resultante do concurso de várias infracções a que foram aplicadas sanções acessórias de inibição de condução devia resultar do cúmulo jurídico ou, antes, do cúmulo material dessas penas, tendo o acórdão-fundamento decidido que, à semelhança do sucede com as penas principais, também as penas acessórias de inibição de condução estão sujeitas a cúmulo jurídico, enquanto no acórdão recorrido o Tribunal de Segunda Instância decidiu no sentido contrário, entendendo que a pena acessória única aplicável se determina através do cúmulo material das penas acessórias de inibição de condução aplicadas e não do respectivo cúmulo jurídico.
Por acórdão de 12 de Janeiro de 2022, o Tribunal de Última Instância ordenou o prosseguimento do recurso, por se verificarem todos os pressupostos para o Tribunal de Última Instância proferir acórdão para fixação de jurisprudência.
O Ministério Público apresentou, nos termos do disposto no art.º 424.º n.º 1 do Código de Processo Penal, as suas alegações, entendendo que devia ser fixada jurisprudência no seguinte sentido:
“Em caso concurso de crimes ou de contravenções a que sejam aplicadas penas acessórias de inibição de condução de veículos automóveis, estas estão sujeitas a cúmulo jurídico.”
Tendo sido constituído o Colectivo, com a formação referida no n.º 2 do art.º 46.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, e corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentos
2.1. Constata-se nos presentes autos o seguinte:
A - No Processo n.º 928/2020
- O arguido foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, e na pena acessória única de inibição de condução por 3 anos, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo art.º 142.º n.º 1 do Código Penal, conjugado com o disposto no art.º 93.º n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário, de dois crimes de abandono de sinistrados p.p. pelo art.º 88.º n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário;
- O Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo a decisão recorrida;
- No que respeita a questão da pena acessória, e invocando os acórdãos proferidos pelo mesmo Tribunal nos Processos n.os 828/2010 e 270/2017, entendeu o Tribunal de Segunda Instância não haver motivos para proceder ao cúmulo jurídico das penas acessórias, que é excluído pela sua natureza de dependência e afastado expressamente pela norma contida no art.º 71.º do Código Penal, nomeadamente o n.º 4 do artigo.
B - No Processo n.º 540/2010
- No Tribunal Judicial de Base a arguida foi declarada autora de 4 contravenções ao disposto no n.º 1 do art.º 31.º da Lei do Trânsito Rodoviário e, nos termos do art.º 98.º n.º 4 da mesma lei, condenada na inibição de condução pelo período de 1 mês em relação a cada uma das contravenções, e em cúmulo em 4 meses de inibição de condução;
- Apreciada a questão de cúmulo jurídico das penas acessórias suscitada pela arguida no seu recurso interposto da sentença de 1.ª instância, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar procedente a pretensão da arguida, ficando a mesma condenada na pena de única de 2 meses e 15 dias de inibição de condução.
- No entendimento do Tribunal de Segunda Instância, é de proceder ao cúmulo jurídico das penas acessórias, dado que, sendo uma pena acessória, a inibição de condução não deixa de ser uma verdadeira pena, consequência jurídica de factos típicos com relevância penal e, se o regime do art.º 71.º do Código Penal se aplica também às contravenções e se aquele que é punido com penas principais parcelares pela prática, em concurso real, de vários crimes pode “beneficiar” do sistema do cúmulo jurídico, não se vê motivos para que assim não suceda em relação às penas acessórias, sendo ainda que o previsto no n.º 4 do art.º 71.º não constitui obstáculo legal ao cúmulo jurídico das penas acessórias.
2.2. In casu, a questão a resolver reside em saber, no caso de concurso de crimes ou de contravenções a que sejam aplicadas penas acessórias de inibição de condução de veículos automóveis, a pena única deve resultar do cúmulo jurídico, ou do cúmulo material, das penas parcelares. Ou seja, as penas acessórias de inibição de condução estão sujeitas, ou não, a cúmulo jurídico.
Como se sabe, as “regras da punição do concurso” encontram-se definidas no art.º 71.º do Código Penal, que dispõe o seguinte:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
Decorre da norma citada que, relativamente à pena de prisão e à pena de multa, incluídas nas penas principais (art.ºs 41.º e seguintes do Código Penal), é muito clara a lei que manda proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares, devendo a pena única ser determinada entre os limites legais máximo e mínimo (n.º 2 do art.º 71.º); e no caso de “concurso” entre a(s) pena(s) de prisão e a(s) pena(s) de multa, procede-se também ao cúmulo jurídico das penas, “considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços” (n.º 3 do art.º 71.º).
A mesma clareza não se vislumbra quando estão em causa várias penas acessórias do mesmo tipo, tal como acontece no presente caso, em que foram aplicadas as penas acessórias de inibição de condução.
Não obstante a referência às penas acessórias (e medidas de segurança) no n.º 4 do art.º 71.º, certo é que dele não se pode concluir, directamente, pelo cúmulo jurídico, nem pelo cúmulo material, das penas acessórias, daí que a adoptação das soluções pelo mesmo Tribunal em sentido oposto sobre a mesma questão, que originou o presente recurso para fixação de jurisprudência.
2.3. O Prof. Figueiredo Dias fez uma abordagem aprofundada sobre a punição no caso de concurso de infracções e expôs as seguintes considerações que passamos a citar1:
Em face de concurso de infracções, há essencialmente dois sistemas que podem ser aplicados em relação às penas resultantes de cada um dos crimes: por um lado, o sistema da acumulação material e, por outro, o sistema da pena única ou pena do concurso.
No sistema da acumulação material, “o juiz determina a pena cabida a cada crime concorrente como se de casos de unidade criminosa se tratasse; e aplica ao agente a totalidade das penas determinadas. Tais penas serão depois sucessivamente cumpridas, se tiverem a mesma natureza (v.g., 4 penas de prisão); ou sê-lo-ão simultaneamente, se tal se revelar materialmente possível (v.g., 1 pena de prisão e 1 pena de multa).”
No que concerne às penas principais, o sistema da acumulação material é alvo de crítica da doutrina pelas dificuldades que coloca em termos práticos e, também, porque a sua execução “noutros casos, levaria à modificação real da espécie de pena (v.g., a execução de 10 penas de prisão de 15 anos cada transformaria penas temporárias de prisão em pena de prisão perpétua; pena que, inclusivamente, a ordem jurídica pode desconhecer, ou até, como sucede entre nós, repudiar)”. Daí que “este sistema, na sua integral pureza, não se encontra hoje consagrado na maior parte das legislações”.
Acresce que tal sistema contrariaria o “princípio da culpa: a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso: aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um inegável efeito multiplicador. O que, se é particularmente visível quanto às penas de multa e ao seu efeito «progressivo» (…), não deixa de ser exacto – e ainda, em princípio, mais pesado para o agente – quanto às penas de prisão.”
Por outro lado, no sistema da pena única ou pena do concurso o legislador “manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena com concurso, desde logo dogmaticamente justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e política-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo, da prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena”.
Note-se ainda que este sistema da pena única “pode assumir duas formas estruturalmente diferentes: ser uma pena unitária ou antes uma pena conjunta”.
No regime da pena unitária, os crimes em concurso perdem a sua autonomia, “não se tornando sequer necessário determinar a pena de cada um: eles não têm relevo decisivo (como no sistema da acumulação material) ou sequer mediato (como veremos ser o caso nos sistemas da absorção e da exasperação) para a pena do concurso, apenas podendo entrar em linha de conta como simples factores de medida desta pena. Tudo se passa, em suma, como se o conjunto dos factos praticados constituísse um único crime (imaginário), relativamente ao qual o juiz faria funcionar os critérios da culpa e da prevenção para efeito de determinação da pena.”
Por sua vez, o regime da pena conjunta (também designado por cúmulo jurídico por contraposição ao cúmulo material resultante do sistema da acumulação material) impõe que as “penas concretamente determinadas, para um dos crimes em concurso sejam depois transformadas ou convertidas, segundo um «princípio de combinação» legal, na moldura penal ou na pena do concurso. Essencial é que a medida da pena do concurso resulte de uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente: nesta parte há, na verdade, um ponto comum entre as construções da pena unitária e da pena conjunta; sem que, todavia, esta se confunda com aquela, porquanto a «unitariedade» da avaliação dos factos e da personalidade não fundamentada – como é característica essencial da pena unitária – uma punição por inteiro desligada das penas parcelares, relativamente à qual os crimes concorrentes teriam só a função de factores da medida daquela; antes opera no quadro de uma combinação das penas parcelares, as quais não perdem a sua natureza de fundamentos da pena do concurso.”
No sistema da pena única, é criticado o regime da pena unitária por conta dos inconvenientes prático-jurídicos de natureza processual (já que os crimes concorrentes perderiam a sua autonomia, levantando-se vários problemas no que concerne aos recursos, à pluralidade de processos, à fixação superveniente da pena do concurso, de amnistia, de prescrição ou de suspensão de execução da pena, por exemplo) e, ainda, por ser contrário ao sistema jurídico-penal “que encontra no facto, por razões irrenunciáveis ligadas ao princípio do Estado de Direito, o pressuposto, o fundamento e a medida de toda a intervenção.”
O regime da pena conjunta pode obedecer, no entanto, a princípios diferentes com implicações práticas que podem ser passíveis de crítica.
Assim, se a combinação das penas parcelares se faz sob a égide de um princípio da absorção pura, “segundo o qual a punição do concurso será constituída simplesmente pela pena concretamente determinada e cabida ao crime mais grave”, devem opor-se “reservas político-criminais insuperáveis” porque “concede, na verdade, plena impunidade ao agente de um crime para a prática de quaisquer outros crimes de igual ou de menor gravidade, aniquilando nesta medida, pura e simplesmente, o efeito de prevenção geral que à punibilidade de todo e qualquer crime tem por força de ligar-se.”
Já assim não será quando o regime da pena conjunta se constrói com base no princípio da exasperação ou agravação, pois aí a punição do concurso “ocorrerá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes (sem que, todavia, possa ultrapassar a soma das penas que concretamente seriam aplicadas aos crimes singulares). Com efeito, neste sistema, a prática de qualquer crime sempre determinará uma agravação da responsabilidade do agente, enquanto o «desconto» ou «atenuação» que uma tal solução pode representar, relativamente ao princípio da acumulação material, se justificará, em perspectiva político-criminal, como forma de evitar o efeito multiplicador que a acumulação possui relativamente à culpa do agente.
Indiscutível é, no entanto, que no sistema da exasperação o efeito agravante é tanto menor quanto maior for o número de crimes praticados pelo agente; podendo, desta maneira, o efeito agravante cair a cotas tão baixas que ponham irremediavelmente em causa o limiar mínimo de prevenção geral positiva que não pode, em caso algum, ser desrespeitado sem que a aplicação da pena perca todo o seu sentido.”
2.4. Feitas estas considerações globais, podemos então avançar que no art.º 71.º do Código Penal da RAEM se encontra consagrado o regime da pena conjunta “(segundo o mecanismo do cúmulo jurídico), ainda que se não tivesse submetido aos cânones estreitos de qualquer das modalidades que antes vimos pairarem no seio da respectiva proposta, optando antes por um caminho que poderemos designar por sistema misto.
Ou seja: o sistema sufragado pelo legislador da RAEM nutre-se de uma submissão, ainda que contida, ao modelo da exasperação ou agravação (na medida em que situa a punição do concurso, quanto ao limite mínimo, na pena correspondente ao crime mais grave), mas determinando que a pena concreta a fixar há-de ser agravada em razão da pluralidade de ilícitos, sem, contudo, essa agravação ultrapassar a soma das penas singulares atribuídas a cada um dos crimes integrantes do concurso (…)”.2
Ora, tal como já foi referido, se em face da lei de Macau não se colocam quaisquer dúvidas no que concerne ao cúmulo jurídico de penas principais, o mesmo não se poderá dizer relativamente ao potencial cúmulo de penas acessórias, pois quanto a estas não se encontra na lei uma resposta expressa (como aliás fez notar José Faria de Costa através do seu artigo sugestivamente intitulado “Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”).
Por isso, “coloca-se a questão de se saber se, no âmbito das penas acessórias, é possível a aplicação da pena única – mas conjunta, porquanto isso mesmo decorre do CÓDIGO PENAL –, a que se chega através do funcionamento das regras do cúmulo jurídico. Ou se, ao invés, tal instituto não deverá funcionar, efectuando-se, isso sim, um cúmulo material das diferentes penas acessórias a aplicar. Responder a esta questão é tarefa importante, pois, como está bom de ver, o resultado final a que se chega, através do funcionamento das regras de um ou de outro instituto, poderá ser, em uma e outra hipótese, diferente. Porém, não apenas por tal motivo, mas, por sobre tudo, por estoutro: optar por uma ou outra solução não deverá, em momento algum, ser obra da sorte ou escolha irracional, mas sim fruto de uma tarefa de ponderação aturada que nos guie em um sentido em detrimento de outro.”3
2.5. Quanto a nós, uma resposta a esta questão depende de uma prévia definição precisa do conceito e natureza das penas acessórias e da consequente delimitação em face das penas principais.
Nota-se que, tanto no acórdão recorrido como no acórdão-fundamento, o Tribunal de Segunda Instância tocou na natureza das penas acessórias, sendo que aquele primeiro salientou a sua natureza de dependência em relação às penas principais, enquanto o segundo considerou que, sendo embora uma pena acessória, a inibição de condução não deixa de ser uma verdadeira “pena”, consequência jurídica de factos típicos com relevância penal.
Como é sabido, consideram-se “penas principais as que, encontrando-se expressamente previstas para sancionamento dos tipos de crime, podem ser fixadas pelo juiz na sentença independentemente de quaisquer outras”4.
No sistema da RAEM, na categoria de penas principais incluem-se a pena de prisão (pena privativa de liberdade) e a pena de multa (pena pecuniária).
Por sua vez, são penas acessórias “aquelas cuja aplicação pressupõe a fixação na sentença de uma pena principal.”5
Sobre as penas acessórias, estatui o art.º 60.º do Código Penal, a título de “princípios gerais” o seguinte:
“1. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
2. A lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões.”
Segundo Manuel Leal-Henriques, em anotação a tal art.º 60.º, que “Estamos, com efeito, perante medidas de reforço, postas à disposição do juiz com o objectivo de lhe possibilitar cobertura de manchas penalmente relevantes a que as penas principais não logram chegar de forma totalmente eficaz, quer pela sua natureza, quer pelas suas finalidades.
Cria-se, assim, pois um sistema de censuras (penas principais e acessórias) que se completam, na consideração de que «todas as penas se traduzem numa diminuição de bens jurídicos»: penas principais, que «atingem os bens da… liberdade pessoal, do património»; e penas acessórias, que «ferem… o indivíduo na sua “honra” jurídica, quer dizer no conjunto de possibilidades, de titularidades, de relações que o sujeito disfrutava no seio da comunidade» (GIUSEPPE BETTIOL, op. cit., págs. 203 e 204).”6
Sem intenção de ignorar o entendimento diferente, no sentido de considerar que as penas acessórias não são verdadeiras penas7, que merece o nosso muito elevado respeito, é outra a nossa opinião.
Na verdade, a posição (de não serem verdadeiras penas) é contestada em face da evolução legal verificada no seio das penas acessórias.
Com efeito, é certo que num momento inicial “o legislador do CÓDIGO PENAL, não obstante enunciar igual comando ao constitucional, em seguida, ao invés de proceder ao tratamento das penas acessórias como se de verdadeiras penas se tratasse, quedou-se simplesmente por uma alteração formal, dando a alguns dos efeitos das penas a designação de penas acessórias, ligando-as a uma ideia de prevenção de segurança geral e individual, mas alheias à culpa do agente. (…) Veja-se, também, a posição silente do legislador do CÓDIGO PENAL de 1982 quanto à duração das penas acessórias, ou quanto à inexistência, para elas, de molduras penais abstractas, através das quais se pudesse chegar à medida da pena acessória justa. Aliás, se bem vemos o problema, o artigo 66.º do CÓDIGO PENAL, que na sua redacção original tinha a epígrafe de pena de demissão, não previa a hipótese de, uma vez o funcionário demitido, poder, em momento posterior, voltar a ocupar idêntico ou igual cargo, a não ser através do funcionamento das regras do instituto da reabilitação previstas no então artigo 70.º do CÓDIGO PENAL. Actualmente a pena de proibição do exercício de função, que veio substituir aquela, na sequência da Revisão de 1995, tem efectivamente uma moldura penal abstracta. O mesmo raciocínio comparativo pode igualmente ser feito a propósito das penas acessórias aplicadas em virtude da prática de um crime contra a segurança do Estado. (…) Por sua vez, o preceito legal onde se encontra consagrada a proibição de conduzir veículo com motor, elevada à categoria de pena acessória através dessa mesma revisão, logo no seu n.º 1, prevê a moldura penal abstracta dessa mesma pena. Fica assim evidente que, com o passar do tempo, o legislador penal foi tomando consciência de que as penas acessórias deveriam ser valoradas como se de verdadeiras penas se tratasse, com molduras penais, e, em consequência, com limites de duração e com finalidades próprias.”8
Nesta perspectiva se explicaria, desde logo, a ausência de disposição expressa quanto ao cúmulo jurídico das penas acessórias no Código Penal da RAEM, influenciado como foi pelo Código Penal de Portugal de 1982 e pelos trabalhos de revisão de 1995, uma vez que, no fundo, “o legislador do CÓDIGO PENAL de 1982 não estabeleceu para as penas acessórias as regras do cúmulo jurídico em situações de concurso efectivo não porque não o tenha querido fazer. Não porque se tenha esquecido. Mas tão-somente porque não as assumiu como verdadeiras penas.”9
No entanto, em face da evolução legislativa acima referida por José de Faria Costa, as penas acessórias passaram a configurar-se como verdadeiras penas em face do regime legal actualmente vigente.
Com efeito, afirma Paulo Pinto de Albuquerque que a “pena acessória é «a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas cuja autonomia se manifesta porque … a sua aplicação depende da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime», da «valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa» e também porque «a pena é graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei».
Daí – diz o prestigiado Magistrado e Docente Universitário – «a pena acessória nada tem a ver com o efeito da pena, isto é, a consequência automática e necessária do crime aplicável em cumulação com uma pena principal» (op. cit., em comentário ao art.º 65.º).”10
Esta opinião parece sair reforçada pelo facto de, conforme relata Manuel Leal-Henriques, ter sido suscitado este problema na “(…) Comissão Revisora do Código Penal Português, tendo-se aí considerado que o texto de 1982 (idêntico, neste ponto, ao de Macau) confundiu o instituto das penas acessórias com o dos efeitos das penas, concluindo-se que, não sendo de levantar dúvidas quanto à pertinência da manutenção dos efeitos das penas, outrotanto não sucedia relativamente às penas acessórias, em bom rigor tidas como não previstas no texto do diploma, que se ficou pela simples regulação de dois efeitos das penas e não de duas penas acessórias, uma vez que, para haver pena, teria que haver medida e tal não resultava do articulado, sugerindo-se, pois, a necessidade de reformular o Código no sentido de se preverem verdadeiras penas acessórias, como a interdição da condução dos veículos automóveis (cfr., ACTA n.º 5).”11
Idêntico raciocínio pode ser seguido em face da legislação da RAEM.
Veja-se que o Código Penal de Macau, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1996, já prevê no art.º 60.º um n.º 2 segundo o qual “A lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões.” – norma inexistente na versão original do Código português de 1982 e que surge com a sua revisão de 1995 – e, em conformidade e a título meramente exemplificativo, prevê uma clara pena acessória de “Proibição do exercício de funções públicas”, com uma moldura penal abstracta.
Nestes termos, julga-se que a evolução legislativa que influenciou decisivamente o Código Penal da RAEM configura as penas acessórias como autênticas penas e não como “efeitos das penas”.
Acresce que, embora considere que é precisamente pelo facto de o legislador não ter definido um prazo de duração máxima das penas acessórias que se demonstra que as mesmas não configuram verdadeiras penas, o Prof. Jorge de Figueiredo Dias entende que a pena acessória como a “proibição de conduzir” deve passar a ser considerada verdadeira pena indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente:
“A evolução mais correcta, em perspectiva político-criminal, para o conjunto de problemas aqui em consideração é, assim, uma solução diversificada69. As chamadas penas acessórias, sempre que justificáveis apenas à luz de uma prevenção especial de neutralização ou de inocuização, devem na verdade ser eliminadas como penas e transformadas em verdadeiras medidas de segurança, ao estilo do que faz o art. 97.º com a interdição de profissões (cf. infra § 799 ss.). Parece indiscutível, no entanto, continuar a existir espaço, para além disto, para sanções acessórias ou adjuvantes da função da pena principal, que reforcem e diversifiquem o conteúdo penal sancionatório da condenação. O que importa então é que tais sanções se assumam como verdadeiras penas, indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente, dotadas de uma moldura penal específica e permitindo assim a tarefa judicial de determinação da sua medida concreta em cada caso; e que, através destas notas, se assumam como entidades distintas, tanto do ponto de vista dogmático, como político-criminal, dos meros «efeitos penais da condenação».
Esse deverá ser o caso, como se disse já (supra § 205), da proibição de conduzir enquanto pena acessória do direito penal geral e não apenas do direito penal da circulação rodoviária. Como deverá ser o caso da proibição (temporária) de ocupar ou desempenhar cargos públicos, no sentido desta pena devendo reconverter-se (ao estilo, v.g., do § 45 II do CÓDIGO PENAL alemão ou do art. 45.º-2 do Projecto suíço Schultz) a pena de demissão; a qual restaria assim, qua tale, apenas como sanção disciplinar.”12
É verdade que a previsão legal da RAEM sobre a pena de inibição de condução é diferente da de Portugal, pois em Macau tal pena é prevista apenas na Lei do Trânsito Rodoviário, não estando incluída expressamente no próprio Capítulo do Código Penal destinado a regular as penas acessórias, sendo que, ao abrigo do n.º 2 do art.º 60.º do Código Penal, “A lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões”.
2.6. Esclarecida a natureza das penas acessórias, cabe então apurar o alcance e duração que as mesmas podem ter, apurando-se então se em caso de concurso de penas acessórias de igual espécie, deve ser aplicado um cúmulo jurídico ou, antes, um cúmulo material.
O problema não se coloca em relação às penas acessórias não sejam do mesmo tipo.
Tal como se referiu antes, a jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância aponta para sentidos diferentes e não se encontra nenhum acórdão proferido pelo Tribunal de Última Instância que aborde a mesma questão.
A questão ora em apreciação também foi objecto da controvérsia na jurisprudência (como também na doutrina13) de Portugal, não tendo obtido uma resposta consensual, o que conduziu à uniformização de jurisprudência efectuada no acórdão n.º 2/2018 do Supremo Tribunal de Justiça.
Salvo o devido respeito, inclinamo-nos para acolher a posição no sentido de que, dada a natureza das penas acessórias, enquanto as verdadeiras penas, se deve proceder ao cúmulo jurídico, e não ao cúmulo material, das penas acessórias (de igual espécie), em conformidade com o art.º 71.º do Código Penal, não constituindo obstáculo a tal cúmulo o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.
Ora, entende-se que “Tivesse o legislador penal de 1982 a preocupação de as considerar como verdadeiras penas – por certo, aquando do tratamento a dar aos crimes que se encontram em relação de concurso efectivo – teria, então, previsto igualmente que as penas acessórias não se somam de uma forma aritmética, por forma a chegarmos a uma só pena. Antes merecem, enquanto verdadeiras penas, o tratamento dispensado pelas regras do cúmulo jurídico adoptadas pelo legislador para as penas principais. Mais: se estamos a tratar de uma verdadeira pena, então a sua medida é sempre a medida da culpa e toda a medida da pena que ultrapasse a medida da culpa é absolutamente ilegal, e, logo, o que se pretende em última análise é que na aplicação concreta da medida da pena, levando em linha de conta a moldura penal abstracta, se encontrem presentes os princípios da perequação dos mínimos e máximos. Em termos legais, estas duas ideias acabadas de expender encontram-se previstas nos artigos 40.º, n.º 2, e 71.º, ambos do CP. Não há, como se está a ver, razão alguma para que esse raciocínio não seja válido para as penas acessórias.”14
É de salientar que mesmo aceitando a natureza das penas acessórias enquanto verdadeiras penas, parte da doutrina e jurisprudência comparada de Portugal sustentaram que as normas equivalentes às dos art.os 71.º n.º 4 e 72.º n.º 3 do Código Penal da RAEM afastavam a possibilidade do cúmulo jurídico15, tal como entende o acórdão ora recorrido.
Por outro lado, há também jurisprudência que afirme e decida pelo cúmulo jurídico das penas acessórias.16
E veio a ser proferido, em 11 de Janeiro de 2018, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2018, votado por unanimidade, em que, após um resumo da doutrina e jurisprudência controvertida, se fixou o seguinte entendimento: “Em caso de concurso de crimes, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, com previsão no n.º 1 al. a) do art. 69.º do CÓDIGO PENAL, estão sujeitas a cúmulo jurídico.”
Na perspectiva do direito comparado, a jurisprudência portuguesa sobre a idêntica questão pode servir, em certa medida, como referência para a resolução da questão ora em causa.
Na verdade, a posição de cúmulo jurídico das penas acessórias pode ser sustentada nos seguintes termos:
Desde logo, por se tratar de verdadeiras penas, torna-se indispensável que as penas acessórias, enquanto instrumentos de política criminal, ganhem um específico conteúdo de censura do facto, por aqui se estabelecendo a sua necessária ligação à culpa, um dos critérios legais estabelecidos para a determinação da medida concreta da pena (art.os 40.º n.º 2, 65.º n.º 1 e n.º 2, al. b) do Código Penal de Macau.
E não se vê nenhuma razão forte para que sejam subtraídas às regras do cúmulo jurídico, que é o que vigora no nosso sistema jurídico para o cúmulo das penas principais, sendo que a medida da pena acessória deve ser determinada em concreto dentro dos limites da moldura abstracta prevista em concreto, tendo em vista o princípio da culpa, da gravidade dos factos e dos fins das penas, de prevenção geral e muito em particular de prevenção especial.
E tal como sustenta o acórdão-fundamento, «Na verdade, se o regime do art. 71.º do C.P.M. se aplica também às “contravenções” – cfr., o n.º 1 do art. 124.º do C.P.M. e art. 83.º, n.º 1 da L.T.R., – e se aquele que é punido com penas principais parcelares pela prática, em concurso real, de vários crimes, e com o desvalor que merece, pode, ainda assim, “beneficiar” do sistema do cúmulo jurídico, motivos não vemos para que assim não suceda em relação às “penas acessórias”.»
Não se nos afigura que o disposto no n.º 4 do art.º 71.º, nem o n.º 3 do art.º 72.º, ambos do Código Penal, constitua obstáculo ao cúmulo jurídico das penas acessórias.
Nos termos do n.º 4 do art.º 71.º, “As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”, enquanto dispõe o n.º 3 do art.º 72.º que “As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior”.
Ora, versa o art.º 71.º do Código Penal sobre o concurso de crimes, e não propriamente sobre o concurso de penas, cuja função é delimitar a moldura penal abstracta do concurso, fixando os limites máximos e mínimos. E apontando para o sentido de concurso jurídico das penas da mesma natureza, o preceito não exclui as penas acessórias.
Salienta-se que só se fala no cúmulo jurídico das penas acessórias da mesma espécie, daí que não nos convence o argumento do acórdão ora recorrido que pergunta como se faz o cúmulo jurídico das penas de inibição de condução e de proibição de exercício de determinada profissão.
Tal como entende o acórdão-fundamento, com o estatuído no n.º 4 do art.º 71.º, “mais não terá pretendido o legislador que clarificar que o cúmulo jurídico das penas principais não “absorve” (ou “consome”) as penas acessórias”, reforçando assim a ideia de que a pena acessória é sempre aplicada no caso de concurso, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
No que respeita ao disposto no n.º 3 do art.º 72.º, referente ao “conhecimento superveniente do concurso”, não se nos afigura que este preceito permita sustentar que as penas acessórias não possam ser objecto de cúmulo jurídico.
Como se constata no mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de Portugal, “Impondo a manutenção das penas acessórias anteriormente aplicadas, salvo se desnecessárias em vista da nova condenação, como será o caso de a pena acessória de proibição de conduzir concorrer com a medida de segurança de “cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo automóvel” do art.º 101.º, ou se, num segundo juízo se entenda serem agora demasiado severas (…), a letra da lei não aponta no sentido de que tais penas se mantenham em acumulação material.
Já a segunda parte do preceito (“se forem aplicáveis ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face de decisão anterior”), visa prevenir, p. ex., que a pena acessória prevista para um dos crimes em concurso superveniente possa não ser aplicada, como além, agora mutatis mutandis, por falta dos pressupostos materiais, desde logo no que respeita à proibição de conduzir, se antes tiver sido aplicada concorrente medida de segurança de cassação do título e medida e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor (art.º 101.º).”
E considera-se que é “de uma questão de necessidade de aplicação das penas acessórias em caso de concurso, superveniente ou não, de que tratam tais preceitos, aí se não vislumbrando qualquer compromisso legal com a sua acumulação material, ou exclusão do cúmulo jurídico”.
Acresce que, não obstante a falta de previsão no n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal dum limite máximo para as penas acessórias, não custa em nada aceitar a aplicação, por analogia e em benefício do condenado, o limite máximo correspondente à pena de prisão.
Concluindo, entendemos que, enquanto verdadeiras penas com função adjuvante das penas principais, não podem as penas acessórias deixar de ter o mesmo tratamento das penas principais, aplicando-se as regras do cúmulo jurídico previstas no art.º 71.º do Código Penal para as penas principais.
2.7. Passamos a ver as penas acessórias concretamente em causa, de inibição de condução.
No acórdão recorrido, a pena de inibição de condução foi aplicada pela prática de crimes.
Como se sabe, nos termos da Lei do Trânsito Rodoviário, a pena de inibição de condução é aplicável pela prática de crimes (art.º 94.º) ou pela prática de contravenções (art.ºs 96.º e 98.º a 104.º).
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 123.º n.º 1 e 124.º n.º 1 do Código Penal de Macau, constitui contravenção “o facto ilícito que unicamente consiste na violação ou na falta de observância de disposições preventivas de leis ou regulamentos”, sendo aplicável às contravenções o preceituado para os crimes, salvo disposições em contrário.
E dispõe o art.º 126.º do Código Penal que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contravenção, o agente é punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contravenção.”
E “rege-se pela lei geral” a responsabilidade civil, penal ou contravencional decorrente de acidente de viação na via pública ou de infracção ao disposto na Lei do Trânsito Rodoviário, com as especialidades constantes da mesma lei (n.º 1 do art.º 83.º da Lei do Trânsito Rodoviário).
Daí que se permite concluir pela aplicação às contravenções do preceituado para os crimes (incluindo as regras de cúmulo jurídico).
Assim, não se nos afigura existir obstáculo ao cúmulo jurídico das penas acessórias de inibição de condução, independentemente da sua aplicação pela prática de crimes ou contravenções.
Sendo a regra o regime penal do cúmulo jurídico das penas e não se encontrando na Lei do Trânsito Rodoviário nenhuma norma a excluir o cúmulo jurídico das penas de inibição de condução, impondo a acumulação material das mesmas penas, é de proceder ao cúmulo jurídico das penas acessórias no caso de concurso.
Por outra palavra, em todo o caso, não parece possível a acumulação material da sanção acessória perante a inexistência de norma legal expressa que o permita.
Note-se, aliás, que no art.º 94.º da Lei do Trânsito Rodoviário se afirma precisamente que a medida da pena de inibição será determinada “consoante a gravidade do crime”, o que nos parece indicar não só que «a pena é graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei», mas também que é feita uma «valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa», todos requisitos de uma verdadeira pena acessória17.
E resulta do Parecer n.º 1/III/2007 da 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, que versa sobre a Proposta de Lei do Trânsito Rodoviário, a intenção do legislador, que acaba por reconhecer que o art.º 94.º trata de uma pena acessória.
“Em termos de circulação rodoviária, esta medida norteia-se por regras de ordenação social e pela gravidade da infracção cometida, sendo-lhe reconhecidos efeitos dissuasores importantes. A medida visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do condutor, embora também lhe estejam associados efeitos de prevenção geral. Como pena acessória que é tem o seu destino ligado ao da pena principal e só pode ser aplicada em consequência da condenação numa pena principal, assim como, em princípio, só pode ser suspensa em consequência da suspensão da pena principal.”18
Sendo ainda referido que tal pena “visa prevenir a perigosidade do condutor, embora também lhe estejam associados efeitos de prevenção geral”, o que reforça a sua qualificação enquanto verdadeira pena acessória, pois as penas acessórias “igualmente visam finalidades de prevenção geral e especial, ainda que, também, no caso da proibição de conduzir, acresça um contributo para a emenda cívica do condutor imprudente e também um efeito de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa”.19
No fundo, e conforme também refere o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações de recurso, sendo o cúmulo jurídico regra geral na punição do concurso de infracções na RAEM, seria necessária uma norma que previsse a acumulação material de sanções acessórias da mesma espécie, para que fosse afastado o cúmulo jurídico dessas penas.
Tudo ponderado, é de concluir pelo cúmulo jurídico das penas acessórias de inibição de condução previstas na Lei do Trânsito Rodoviário e aplicadas em sede de concurso de crimes ou contravenções.
3. Caso concreto
Aqui chegados, resta rever a decisão ora recorrida, nos termos do n.º 2 do art.º 427.º do Código de Processo Penal, fixando a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas acessórias de inibição de condução concretamente aplicadas ao arguido.
Ora, o arguido foi condenado na pena acessória única de inibição de condução por 3 anos, resultante da acumulação material das penas acessórias de inibição de condução de 6 meses por cada um dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência e de 1 ano por cada um dos dois crimes de abandono de sinistrados.
Seguindo as regras do cúmulo jurídico previstas nos n.os 1 e 2 do art.º 71.º do Código Penal, a pena única é fixada numa moldura penal de 1 ano a 3 anos de inibição de condução, devendo o tribunal considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Atentos os factos apurados no caso concreto, nomeadamente a prática de vários crimes pelos quais foi o arguido condenado nas penas de prisão e nas penas acessórias de inibição de condução bem como a personalidade do arguido revelada por tais factos, afigura-se ajustada a pena única de inibição de condução por 2 anos e 3 meses.
4. Decisão
Face ao expendido, acordam em:
A) Conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido na parte que julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido da decisão de primeira instância, que por sua vez condenou o arguido na pena acessória única de inibição de condução por 3 anos, pena esta que passa a ser diminuída para 2 anos e 3 meses de inibição de condução.
B) Nos termos do art.º 427.º do Código de Processo Penal, fixar a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da RAEM:
“As penas acessórias de inibição de condução de veículos a motor previstas na Lei do Trânsito Rodoviário e aplicadas em sede de concurso de crimes ou contravenções estão sujeitas a cúmulo jurídico.”
C) Ordenar o cumprimento do disposto no art.º 426.º do Código de Processo Penal.
Sem custas.
27 de Abril de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
Lai Kin Hong (Fiquei vencido nos termos do disposto no artº 71º/4 do Código Penal que, na minha óptica, deve ser interpretado de acordo com os ensinamentos do Prof. Eduardo Correia e do Prof. Figueiredo Dias – vide Direito Criminal II, pág. 224 e Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 292, respectivamente.)
Choi Mou Pan (Não se pode concordar com o entendimento de maioria de que as penas acessórias são verdadeiras penas, entendimento este que se constitui a premissa principal, e com todas as inferências procedidas e as conclusões chegadas com base no regime de que o Código Penal de RAEM ainda não estabelece.)
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