I — Relatório
Chan Hio Fong interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal, do Acórdão de 13 de Dezembro de 2016, no Processo n.º 755/2016, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), no qual foi recorrente enquanto arguido, com fundamento em que o mesmo se encontra em oposição com o Acórdão do mesmo TSI, de 23 de Outubro de 2014, no Processo n.º 385/2013.
Por Acórdão de 22 de Março de 2017, este Tribunal de Última Instância reconheceu a existência da referida oposição e determinou o prosseguimento do recurso, configurando a oposição da seguinte maneira:
A oposição entre os dois acórdãos está na interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal, relativo a um dos fundamentos do recurso de revisão, segundo qual a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando: d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
No acórdão fundamento considerou-se que os factos ou meios de prova são novos quando são desconhecidos no processo, embora não fossem ignorados pelo recorrente no momento em que o julgamento teve lugar, para fundamentar o recurso de revisão.
No acórdão recorrido decidiu-se que, se os factos ou meios de prova são conhecidos pelo recorrente no momento em que o julgamento teve lugar, não são novos para fundamentar o recurso de revisão. E que se os meios de prova são conhecidos do recorrente, mas não teve oportunidade de os obter, então são novos e podem fundamentar recurso de revisão.
O recorrente terminou as suas conclusões na alegação, da seguinte forma:
Deve ser fixada a seguinte jurisprudência obrigatória para os tribunais:
Para efeitos do disposto no artigo 431.º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal, os “novos factos ou meios de prova” devem ser “novos” no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, independentemente de serem ou não conhecidos dos sujeitos processuais e/ou passíveis de obtenção à data do julgamento.
Deve ser reenviado o processo ao TSI para que seja proferida nova decisão de harmonia com o sentido fixado, nos termos do n.º 2 do artigo 427.º do Código de Processo Penal.
O Ministério Público concluiu da seguinte maneira a sua alegação:
Deve ser fixada a seguinte jurisprudência obrigatória para os tribunais:
No recurso de revisão com fundamento aludido no art.º 431.º, n.º 1 al.d) do CPP, os factos ou meios de prova devem ser novos no sentido de aqueles não foram apresentados ao tribunal, de modo de serem apreciados e valorados no julgamento que conduziu à condenação, quando se ignorava por parte do arguido no momento em que o julgamento teve lugar, ou, embora fosse conhecido de quem cabia apresentá-los, serão invocáveis em sede de recurso de revisão desde que seja dada uma justificação suficiente e atendível para a omissão, antes, da sua apresentação.
II — Os factos
O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
No âmbito do Processo Contravencional n.º CR4-15-0563-PCT do 4.º Juízo Criminal do TJB, o arguido Chan Hio Fong foi condenado em 27 de Outubro de 2015 (com sentença transitada em julgado em 30 de Junho de 2016), como autor de uma contravenção (por excesso de velocidade) p. e p. pelos art.os 31.º, n.º 1, e 98.º, n.º 3, alínea 2), da LTR, tida como praticada em 18 de Março de 2015, cerca das 18:18 horas, na pena de três mil patacas de multa, convertível em vinte dias de prisão, e na pena acessória de inibição de condução por sete meses (cfr. o teor da sentença a fls. 11v a 12v do processo condenatório).
Nesse processo condenatório, o arguido, apesar de notificado pessoalmente, em 8 de Julho de 2015, da data de audiência de julgamento em primeira instância marcada para o dia 27 de Outubro de 2015, e da faculdade de se fazer representar aí por um advogado seu, de apresentar defesa e de oferecer prova (cfr. o teor da certidão de notificação lavrada a fl. 10 do processo condenatório), não compareceu nessa audiência de julgamento (conforme o que se pode alcançar do teor da acta dessa audiência, lavrada a fls. 11 e seguintes do processo condenatório).
Na pendência do recurso ordinário então interposto pelo arguido da sentença condenatória, o TSI, por promoção do Ministério Público, solicitou ao Serviço de Migração do CPSP o envio do registo de entrada/saída do arguido nos postos fronteiriços de Macau nos dias 16 a 21 de Março de 2015, tendo o CPSP respondido com envio de uma listagem de movimentos dos postos fronteiriços sobre o arguido no período de 16 a 21 de Março de 2015, segundo a qual: nesse período de tempo, a última saída, pelo Aeroporto Internacional de Macau, do arguido de Macau datou de 16 de Março de 2015 (às 15:23 horas), e depois não se registou a reentrada do arguido em Macau (cfr. o processado a fls. 42 a 46 do processo de condenação).
III — O Direito
1. Oposição sobre a mesma questão de direito
Não se suscitam dúvidas sobre a existência de oposição sobre a mesma questão de direito entre os dois acórdãos, sendo esta a oposição fundamental, ou seja, a questão de direito sobre a qual incide a divergência foi determinante para as decisões dos casos concretos.
2. A interpretação histórica do preceito correspondente à alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal
De acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
A disposição correspondente a esta norma no Código de Processo Penal de 1929, que vigorou em Macau até 31 de Março de 1997, até ser substituído pelo actual, estatuía que “Uma sentença com trânsito em julgado só poderá ser revista …4.º Se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciados no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado”.
Quer isto dizer que, relativamente ao ponto que nos interessa considerar não há divergências significativas nas redacções dos dois preceitos.
Na vigência do Código de 1929, LUÍS OSÓRIO1, entendeu que os factos ou elementos de prova devem ser novos, no sentido de desconhecidos por quem os devia apresentar no julgamento.
EDUARDO CORREIA2 sustentou que os factos ou elementos de prova devem ser novos, no sentido de não terem sido apreciados no processo, embora não fossem desconhecidos pelo réu no momento do julgamento.
As duas correntes tiveram os seus seguidores, mas o Supremo Tribunal de Justiça português, a partir da década de 60 do século XX, passou a decidir uniformemente no sentido da 2.ª corrente, o que se manteve já na vigência do Código de 1987.
Contudo, nos últimos anos, a posição do Supremo Tribunal de Justiça português inverteu-se e passou a ser largamente maioritária a doutrina segundo a qual factos ou meios de prova novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderam ser apresentados antes deste3.
Também ultimamente, uma outra corrente do mesmo Tribunal4, embora como regra aceite que os factos ou meios de prova novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento, admite a revisão quando, sendo embora o facto ou o meio de prova conhecidos do recorrente, ele justifique suficientemente a sua não apresentação no julgamento, explicando porque não pôde ou entendeu não dever apresentá-los na altura.
3. A interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal
Um dos valores fundamentais do Direito é o da segurança jurídica, prosseguido por vários institutos, entre os quais o do caso julgado, nos termos do qual uma sentença judicial transitada em julgado é, em regra, imutável.
Não obstante, tal valor confronta-se com um outro, que é o da justiça.
É na tensão entre estes dois valores que se estabelecem as soluções jurídicas legais, tanto no Direito Público, como no Direito Privado.
Em matéria penal, mas não só, o legislador optou por uma solução de compromisso, firmando o princípio da imutabilidade das sentenças transitadas em julgado, mas admitindo, em termos muito limitados, a revogação do caso julgado, por meio do chamado recurso de revisão, para aqueles casos em que considerações clamorosas de justiça se devem sobrepor ao mencionado princípio da imutabilidade das sentenças transitadas em julgado.
Assim dispõe o artigo 431.º do Código de Processo Penal:
1. A revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
2. Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3. Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4. A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.
Deste modo, a revogação do caso julgado penal só pode ocorrer se se verificar um dos fundamentos taxativamente indicados no n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal.
Em princípio, não parece razoável que o recorrente, no recurso de revisão, possa vir a socorrer-se de factos ou meios de prova que já conhecia no processo em que foi condenado, mas que não deu a conhecer ao Tribunal, para os vir a utilizar como fundamento do recurso de revisão.
Seria colocar este instituto à mercê de estratégias processuais da defesa — e mesmo de faltas à lealdade processual — que banalizassem o recurso de revisão, que só deve ser utilizado em casos raros, face ao valor da estabilidade do caso julgado.
Ora, no processo do recurso de revisão com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º, há um preceito que pode iluminar o caminho com vista à interpretação desta norma.
Referimo-nos ao artigo 435.º, onde se estatui:
1. Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas.
2. O requerente não pode indicar testemunhas que não tiverem sido ouvidas no processo, a não ser justificando que ignorava a sua existência ao tempo da decisão ou que estiveram impossibilitadas de depor.
Face ao n.º 2, no recurso de revisão, o requerente não pode indicar testemunhas que não tiverem sido ouvidas no processo, quando já conhecesse a sua existência ao tempo do julgamento, a menos que elas não tivessem podido depor.
Ora, se o requerente não pode indicar testemunhas cuja existência já conhecia, parece seguro que a lei, no recurso de revisão, não considera como novos os factos ou meios de prova que o recorrente já conhecesse ao tempo do julgamento, a menos que ele justifique suficientemente, em termos a avaliar pelo Tribunal, a sua não apresentação no julgamento.
Fixar-se-á, pois, jurisprudência obrigatória neste sentido.
4. O caso dos autos
No caso dos autos, ao tempo do julgamento, para o qual foi notificado, mas não compareceu, o recorrente sabia perfeitamente aquilo que veio alegar no recurso para o TSI da sua condenação, de que não estava em Macau no momento em que lhe foi imputada uma infracção na condução de veículo automóvel em Macau.
Por outro lado, não apresentou qualquer justificação para a não apresentação no julgamento do facto em questão.
Logo, não se verifica o pressuposto previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal, para requerer o recurso de revisão.
IV — Decisão
Face ao expendido:
A) Nos termos do artigo 427.º do Código de Processo Penal, fixam a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais:
“Para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 431.º do Código de Processo Penal, não são novos os factos ou meios de prova que o recorrente já conhecesse ao tempo do julgamento, a menos que ele justifique suficientemente, em termos a avaliar pelo Tribunal, a sua não apresentação nesse julgamento”.
B) Negam provimento ao recurso.
C) Ordenam o cumprimento do disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal.
Custas pelo recorrente.
Macau, 30 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) — Song Man Lei — Sam Hou Fai — Lai Kin Hong — Choi Mou Pan