REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA

Diploma:

Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 15 de Abril de 2015

BO N.º:

18/2015

Publicado em:

2015.5.6

Página:

194

  • O assistente não tem legitimidade para recorrer, quanto à espécie e medida da pena aplicada, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação.
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    Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 15 de Abril de 2015

    Processo n.º 128/2014

    ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

    1. Relatório

    Chu Chek Hou interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Tribunal de Última Instância, do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 25 de Setembro de 2014 e nos autos de recurso penal n.º 160/2014, alegando que este Acórdão se encontrava em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, com o Acórdão proferido em 23 de Julho de 2014 pelo Tribunal de Última Instância nos autos de recurso penal n.º 43/2014.

    O referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, transitado em julgado em 9 de Outubro de 2014, julgou improcedente a arguição de nulidade do Acórdão por si proferido em 31 de Julho de 2014 nos mesmos autos, que por sua vez negou provimento ao recurso do arguido Chu Chek Hou e concedeu provimento parcial ao recurso interposto pela assistente, revogando a decisão de 1.ª instância que suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao arguido.

    Por Acórdão de 28 de Janeiro de 2015, o Tribunal de Última Instância determinou o prosseguimento do recurso para fixação de jurisprudência, por ter considerado preenchidos todos os pressupostos para que este Tribunal profira acórdão de uniformização de jurisprudência.

    O recorrente terminou as suas alegações com a seguinte conclusão:

    “Deverá ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência:

    1 – Seja uniformizada jurisprudência nos termos do disposto no artigo 427.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, no sentido de que o assistente não poder recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação, e consequentemente

    2 – Nos termos do disposto no artigo 427.º, n.º 2 do Código de Processo Penal seja revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que declare nulo o Acórdão proferido em 31 de Julho de 2014 por falta de legitimidade e interesse em agir da Assistente e por falta de promoção do Ministério Público ao abrigo do disposto no art.º 106.º, al. b) do CPP, repristinando-se a condenação penal do Recorrente em 1.ª instância, ou seja, a condenação numa pena de prisão de 1 ano suspensa na sua execução por dois anos.”

    2. Fundamentos

    2.1. No processo n.º 160/2014 do Tribunal de Segunda Instância, inconformada com a decisão de 1.ª instância, tanto na parte penal como na parte civil, a assistente recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, sendo que o recurso do segmento penal da decisão se restringe à pena concreta aplicada ao arguido, pretendendo a assistente a agravação da pena ou, pelo menos, a execução imediata da pena.

    Trata-se de saber se o assistente, devidamente constituído nos autos, tem legitimidade e interesse para interpor recurso da sentença condenatória com fundamento na sua discordância com a escolha e medida da pena.

    No Acórdão proferido em 23 de Julho de 2014 e nos autos de recurso penal n.º 43/2014, o Tribunal de Última Instância decidiu o seguinte:

    - O assistente não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação, como nos casos em que o assistente tenha deduzido acusação, aderido à acusação do Ministério Público ou pretendido que a suspensão da execução da pena aplicada deve ser decretada com a condição de pagamento da indemnização.

    No Acórdão ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância decidiu em sentido oposto:

    - Uma vez que a assistente considerou demasiado leve a pena de prisão aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido e a execução de tal pena não devia ter sido suspensa, a decisão do Tribunal a quo neste sentido foi proferida necessariamente contra a assistente, afectando-a, tem a assistente legitimidade e interesse para recorrer quanto à medida da pena e à suspensão da execução da pena. A legitimidade e o interesse da assistente não dependem da dedução da acusação penal na anterior fase judicial ou da adesão à acusação pública deduzida pelo Ministério Público, pois tais pressupostos não são enumerados no art.º 391.º n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código de Processo Penal.

    Verifica-se, assim, a divergência das soluções vertidas nos dois Acórdãos sobre a mesma questão de direito.

    Pretende o recorrente que se acolha a solução adoptada no acórdão fundamento.

    2.2. Nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 391.º do Código de Processo Penal, o assistente tem legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas.

    E ninguém pode recorrer se não tiver interesse em agir (art.º 391.º n.º 2 do CPP).

    Quanto ao assistente, dispõe o art.º 58.º do Código de Processo Penal o seguinte:

    Artigo 58.º

    (Posição processual e atribuições do assistente)

    1. O assistente tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

    2. Compete em especial ao assistente:

    a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias;

    b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

    c) Interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

    Daí decorre que no processo penal o assistente tem uma posição de colaborador do Ministério Público e a sua intervenção no processo fica subordinada a actividades deste órgão judicial.

    Há porém casos excepcionais previstos na lei em que são conferidos ao assistente, como sendo um dos sujeitos processuais, poderes específicos próprios, tais como o de deduzir acusação por factos não constantes da acusação do Ministério Público ou de deduzir acusação particular (art.ºs 68.º n.º 2, al. b), 266.º e 267.º do CPP), o de requerer a instrução nos termos legais (art.ºs 269.º e 270.º do CPP), entre outros.

    Compete ainda ao assistente, em especial, “interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito”, ao abrigo da al. c) do n.º 2 do art.º 58.º do CPP.

    E para que possa recorrer, o assistente tem que ter legitimidade e interesse em agir, conceito este que consiste na necessidade de utilizar este meio de impugnação para defender e fazer valer um direito do recorrente.

    2.3. A questão ora em apreciação foi objecto de controvérsia nos tribunais superiores portugueses, que conduziu à fixação de jurisprudência, e tem sido discutida nos tribunais de Macau.

    No Acórdão do STJ de Portugal, de 30 de Outubro de 1997, citado para efeito de referência, firmou-se jurisprudência no sentido de que “o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir” (cfr. B.M.J. de Portugal, 470-39).

    E o Tribunal de Última Instância da RAEM foi chamado, por várias vezes, para se pronunciar sobre a questão, tendo exposto no Acórdão de 18 de Setembro de 2013, processo n.º 45/2013, as seguintes considerações, reafirmadas no Acórdão proferido em 23 de Julho de 2014 e no processo n.º 43/2014, invocado pelo ora recorrente como fundamento para fixação de jurisprudência:

    “Ao Ministério Público compete o exercício da acção penal [artigo 56.º, n.os 1 e 2, alínea 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária], esclarecendo a lei que compete, em especial ao Ministério Público, neste âmbito, receber denúncias e queixas e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito, deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento, interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa e promover a execução das penas e medidas de segurança (artigo 42.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, como serão todos os preceitos citados sem indicação de proveniência).

    A lei processual penal permite a constituição de assistente no processo, que é uma parte acusadora privada, que intervém como colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei (artigo 58.º).

    Podem constituir-se assistentes no processo penal, três grupos de pessoas (artigo 57.º):

    - O ofendido (seus sucessores, no caso de morte, e seus representantes, se for incapaz);

    - A pessoa de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento penal;

    - Qualquer pessoa, nos crimes cujo procedimento não depender de queixa nem de acusação particular e ninguém se possa constituir assistente, nos termos das regras anteriores (não interessa agora aprofundar esta noção).

    Quando o procedimento penal depender de queixa, isto é, nos crimes semipúblicos, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (artigo 38.º, n.º 1).

    Quando o procedimento penal depender de acusação particular, isto é, nos crimes particulares, é necessário que a pessoa com legitimidade para tal se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular (artigo 39.º, n.º 1).

    Nos crimes públicos em que há ofendido – como é o caso dos autos – só este se pode constituir assistente.

    O Código de Processo Penal acolheu a noção estrita de ofendido, que é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação [artigo 57.º, n.º 1, alínea a)], noção essa que já resultava da legislação anterior, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 35007, de 13.10.1945 1.

    O artigo 58.º, n.º 2, estatui sobre os poderes que competem, em especial, ao assistente:

    a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias;

    b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

    c) Interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

    A intervenção do assistente no inquérito é totalmente subordinada à do Ministério Público, podendo oferecer provas e requerer diligências que se afigurarem necessárias. Não tem, porém, acesso ao processo, que está em segredo de justiça (artigo 76.º).

    O assistente pode, no inquérito, requerer, nomeadamente, a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, que se proceda a buscas domiciliárias ou noutros locais e a apreensões, incluindo de correspondência (artigo 250.º, n.º 2), que seja ouvida testemunha em declarações para memória futura e estar presente ao seu interrogatório, podendo solicitar a formulação de perguntas ao juiz (artigo 253.º).

    O assistente pode deduzir acusação independente da do Ministério Público nos crimes públicos e semipúblicos, pelos factos da acusação do Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigos 58.º, n.º 2 e 266.º).

    Nos crimes particulares o assistente pode deduzir acusação, ainda que o Ministério Público o não faça (artigos 58.º, n.º 2 e 267.º).

    O assistente pode requerer a abertura de instrução, tanto em caso de acusação do Ministério Público (relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação e importem uma alteração substancial desta), como de arquivamento (artigos 269.º e 270.º) e aí intervir, participando no debate instrutório (artigo 284.º).

    Vejamos, agora, os poderes do assistente em matéria de recursos.

    Como se disse, a lei prescreve que compete ao assistente interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

    O artigo 391.º, n.º 1, alínea b), subordinado à epígrafe “Legitimidade e interesse em agir”, dispõe que o assistente tem legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas, acrescentando o n.º 2, que não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

    A interpretação dos segmentos “decisões que o afectem” e “decisões contra ele proferidas” tem levantado alguma controvérsia, especialmente a legitimidade e o interesse em agir do assistente para recorrer da medida da pena.

    Em matéria de recursos, é praticamente pacífico que o assistente pode recorrer da decisão absolutória do arguido, na medida em que, tendo exercido o direito de queixa ou de acusação por determinado crime, a absolvição do arguido constitui decisão que afecta o assistente 2. É do interesse do assistente a condenação do arguido.

    Pela mesma ordem de razões, também se tem entendido, pacificamente, que o assistente pode recorrer da decisão de não-pronúncia.

    Igualmente, deve-se entender que o assistente pode recorrer da decisão que condenou o arguido por crime diverso do que foi objecto da sua acusação 3. Também está em causa decisão que afecta o assistente.

    Quanto à medida da pena.

    A maioria expressiva da jurisprudência e, ao que parece também da doutrina, nega que, sem mais, o assistente possa recorrer quanto à medida da pena, se o Ministério Público o não fizer.

    Diz-se que a medida concreta da pena, em geral, não afecta o assistente, já que esta questão faz parte do núcleo punitivo do Estado (interesse punitivo), cuja defesa não cabe aos particulares, mas sim ao Ministério Público. Aduz-se, também, que permitir que o assistente recorra para agravar a pena do condenado seria voltar ao tempo da justiça privada.

    Admite-se, nalguns casos, no âmbito da escolha e medida da pena, que o assistente tenha interesse em agir. Por exemplo, quando defenda que a suspensão da pena só se justifica como condição de pagamento indemnizatório ao ofendido/assistente, em determinado prazo.

    É esse o entendimento de MAIA GONÇALVES 4, quando afirma:

    “Questão que tem sido controvertida e objecto de decisões contraditórias é a da legitimidade do assistente para recorrer da medida da pena. Cremos que a esta questão não pode ser dada resposta geral, e que deve ser apreciada caso a caso. Assim, o assistente poderá recorrer da medida da pena quando, no caso, tiver um interesse concreto e próprio em agir, por da medida da pena poder tirar um benefício, v.g. evitando a prescrição. Caso contrário, não lhe será dado recorrer. Neste preciso sentido foi fixada a jurisprudência”.

    Também GERMANO MARQUES DA SILVA 5 discorre no mesmo sentido:

    “A lei, porém, só permite que recorra das decisões que o afectem …, o que representa uma efectiva limitação, porventura ditada pela preocupação de evitar que o assistente, subvertendo a razão da sua intervenção de colaborador da justiça, use o processo para se desforçar.

    As finalidades da punição, que hão-de traduzir-se na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime, pelo menos não é essa a sua finalidade imediata, e por isso que não possa considerar-se que possam afectá-lo”.

    J. DAMIÃO DA CUNHA 6 considera que o assistente tem interesse em agir em matéria de recursos, podendo “interpor recurso restrito à questão da medida da pena, quando durante a audiência de julgamento ele tenha formulado uma qualquer pretensão sobre tal matéria que não tenha merecido acolhimento na decisão final. Ora, esta «pretensão» tem evidentemente de ser formulada – o que poderá manifestamente suceder quer nas chamadas exposições introdutórias, quer nas alegações finais. Daí que só possa decidir sobre a verificação do pressuposto do interesse em agir quem tenha, em primeira mão, de pronunciar um juízo de admissibilidade do recurso – o tribunal a quo.”

    Mas, com razão, já se opôs a esta ideia que nem as exposições introdutórias, nem as alegações finais, na audiência, ficam registadas em acta, pelo que seria impraticável esta doutrina. Além de que o interesse em agir se deve aferir autónoma e objectivamente e não por qualquer opinião vertida em audiência.

    Em suma, afigura-se-nos serem ponderosos os argumentos dos que têm defendido que o assistente não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação, como nos exemplos atrás referidos.”

    ———
    1 M. CAVALEIRO DE FERREIRA,M. CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, p. 130 e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1.º Volume, 1974, p.505 e segs.
    2 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Lisboa/São Paulo, Verbo, 2.ª edição, 2000, III, p. 332.
    3 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, III, p. 332.
    4 MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, Almedina, 15.ª edição, 2005, p. 800.
    5 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, III, p. 332.
    6 J. DAMIÃO DA CUNHA, A participação dos particulares no exercício da acção penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, fasc. 4.º, p. 647 e 648.

    Não se vislumbra nenhuma razão para alterar tal posição já assumida pelo Tribunal de Última Instância, reiterando-se que o direito de punir pertence ao Estado, fazendo parte do núcleo punitivo do Estado a escolha e a determinação da medida concreta da pena, cuja defesa cabe ao Ministério Público, que tem sempre legitimidade e interesse em agir para recorrer de quaisquer decisões judiciais, ainda que no exclusivo interesse do arguido (art.º 391.º n.º 1, al. a) do CPP), daí que a decisão na parte respeitante à espécie e à medida da pena não afecta, em geral, o assistente, não podendo este recorrer só para agravar a pena já aplicada ou para ver, sem mais, imediatamente executada a mesma.

    2.4. No caso vertente, o Tribunal Judicial de Base condenou o arguido, pela prática de 3 crimes de gravações ilícitas p.p. pelo art.º 191.º n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão por cada; em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com condição de pagar à assistente, no prazo de 3 meses a contar do trânsito da decisão, a indemnização no montante de MOP$100,000.00.

    Interpostos recursos, pela assistente e também pelo arguido, o Tribunal de Segunda Instância decidiu, por Acórdão proferido em 31 de Julho de 2014, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e parcialmente procedente o recurso da assistente, revogando a suspensão da execução da pena declarada pelo Tribunal Judicial de Base.

    Foi arguida a nulidade deste Acórdão, alegadamente prevista na al. b) do art.º 106.º do Código de Processo Penal, com fundamento na ilegitimidade da assistente para interpor recurso, que por sua vez veio a ser julgada improcedente, bem ou mal, pois não se nos afigura que a questão suscitada implica a nulidade da decisão judicial.

    Ora, o Ministério Público não interpôs recurso da condenação de 1.ª instância, enquanto a assistente formulou, no seu recurso, 3 pretensões: agravar a pena aplicada ao arguido, não suspender a execução da pena e aumentar a quantia indemnizatória.

    Não resulta dos autos que a assistente tenha mostrado algum interesse concreto próprio que fundamente o seu recurso, para o Tribunal de Segunda Instância, do segmento penal da decisão de 1.ª instância no tocante à medida da pena e à suspensão, ou não, da execução da pena, limitando-se a formular o pedido cível de indemnização, sem que tenha deduzido acusação nem aderido à acusação do Ministério Público.

    E a execução da pena aplicada fica suspensa com a condição de pagamento da indemnização fixada.

    Os pedidos formulados pela assistente em sede do recurso dirigido ao Tribunal de Segunda Instância revelam apenas a sua pretensão, de ver agravada a pena e imediatamente executada a mesma.

    Assim sendo, é de concluir que a assistente não pode interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância.

    Procede portanto o presente recurso, pelo que se deve revogar o Acórdão recorrido, na parte impugnada, o que conduz necessariamente à revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 31 de Julho de 2014 que conheceu do recurso interposto pela assistente, na parte penal.

    4. Decisão

    Face ao expendido:

    A) Concedem provimento ao recurso, revogando o Acórdão recorrido, na parte impugnada, e consequentemente o Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 31 de Julho de 2014 que conheceu do recurso interposto pela assistente, na parte penal, o que implica necessariamente a manutenção da decisão de 1.ª instância, nesta parte.

    B) Nos termos do art.º 427.º do Código de Processo Penal, fixam a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais:

    “O assistente não tem legitimidade para recorrer, quanto à espécie e medida da pena aplicada, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação.”

    C) Ordenam o cumprimento do disposto no art.º 426.º do Código de Processo Penal.

    Sem custas.

    Macau, 15 de Abril de 2015

    Juízes: Song Man Lei (Relatora)

    Sam Hou Fai

    Viriato Manuel Pinheiro de Lima

    Lai Kin Hong (Vencido por concordar com os fundamentos

    do Acórdão recorrido.)

    Choi Mou Pan (vencido nos termos da declaração)

    Processo n º 128/2014

    Declaração de voto

    Vencido por não acompanhar a decisão de maioria no presente recurso para a fixação de jurisprudência, nos seguintes termos.

    A decisão de maioria tomada consiste essencialmente nos fundamentos de que o poder de medida de pena concreta faz parte do núcleo punitivo do Estado (interesse punitivo), cuja defesa não cabe aos particulares, mas sim ao Ministério Público, enquanto se admitiu noutros, sendo embora de contornos excepcionais, que o assistente já se aufere desse interesse quando durante o processo (nomeadamente durante a audiência de julgamento) tenha formulado uma qualquer pretensão sobre tal matéria que não tenha merecido acolhimento na decisão final – pretensão essa que poderá manifestamente suceder quer nas chamadas exposições introdutórias quer nas alegações finais.

    Conforme este entendimento, pode considerar que o interesse punitivo (público, como é óbvio), quanto à medida concreta da pena de que só o Ministério Público pode ser titular, já pode ser alterado a sua natureza privada para que o assistente poderia ter em agir, quando tenha manifestado aquela referida “pretensão”.

    Sendo certo, como se dispõe no nº 1 do artigo 58º do CPP, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei. O princípio geral assim formulado quanto à posição jurídica dos assistentes no processo, como aliás resulta da ressalva da parte final desse n.º 1, recebe na regulamentação das diversas fases do processo fortes derrogações. No n.º 2 do mesmo artigo logo se assinala, nomeadamente, que aos assistentes compete em especial deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a deduza, bem como interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

    A disciplina da legitimidade e interesse em agir quanto aos recursos consta do artigo 391º: O Ministério Público tem legitimidade para recorrer de quaisquer decisões; o arguido e o assistente podem recorrer das decisões contra eles proferidas; etc.

    Não pode, porém, recorrer quem não tiver interesse em agir.

    Enquanto admitisse a medida de pena ser de interesse punitivo público, quer desde início quer até ao fim, nunca poderia este interesse ser alterada a sua natureza pelo assistente, titular do interesse privada, pela manifestamente da dita “pretensão” durante a fase de julgamento.

    De facto, constituindo-se como assistentes os ofendidos, não pode deixar de considerar-se como tais os titulares dos interesses (de interesse jurídico-penal)1 que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

    A intervenção do particular que se configurem como assistentes em matérias especificamente penais, só deve ter-se cabimento o conceito estrito de ofendido.2

    Do mesmo modo e quanto à acusação privada, se é de admitir precisamente um interesse no exercício da acusação, não é legítimo qualquer interesse directo na pretensão punitiva. A acção penal exercida pelo Ministério Público ou por acusação privada é sempre um direito público, acção penal pública. A distinção entre acusação pública e privada não respeita à natureza de acção penal, mas à natureza de órgão que a exerce.

    Os poderes penais pertencente ao assistente deve ser um direito independente de formular a acusação, pedir a abertura de instrução, participar ao julgamento e interpor do recurso, tinha naturalmente a lei de lhes conceder os poderes necessários à sua efectivação, durante as respectivas fases processuais, sendo-lhes concedidas as mais amplas possibilidades de tratamento do objecto do processo.3

    ———
    1 Figueiredo Dias: Direito Processual Penal I, p. 505. Trata-se, segundo o mesmo autor, de um conceito estrito, imediato ou típico do ofendido, não abrangendo os lesados em que são consideradas todas as pessoas que, segundo as normas de direito civil, tenham sido prejudicadas em interesses seus juridicamente protegidos.
    2 Ob. cit., p. 509
    3 Ob. cit., 535/536.

    Assim, o interesse do assistente é meramente penal, directamente relacionado com o objecto jurídico da tutela penal, com o bem jurídico do tipo penal, pelo que a sua intervenção no processo se conexiona somente com matéria especificamente penal, sendo, pois, um colaborador do tribunal na administração da justiça penal, na declaração «do direito do caso concreto». Portanto, os particulares, enquanto vítimas, podem intervir no processo penal com dois objectivos claramente distintos: ou com um objectivo meramente civil, para serem indemnizados; ou com um objectivo penal de colaboração com o Estado na efectivação da responsabilidade penal.

    Impõe-se por si, por isso, a autonomia do assistente nos recursos, não podendo ser afastado do instituto da assistência a respectiva legitimidade, sendo o assistente participante do interesse público, colaborante do Estado, com a atribuição dos amplos poderes que a lei lhe confere, ao contrário da parte civil que desenvolve actividade meramente privada. Razão pelo que ao assistente se conceda o direito de recorrer da decisão final, mesmo que o MP não recorra e o objecto do recurso se cinja à espécie da pena ou medida da pena.

    Por outro lado, a questão da legitimidade para o recurso também não pode ser resolvida com apoio no interesse em agir (artigo 391.º, n.º 2, do CPP), porque são dois pressupostos de acto processual distintos. O «interesse em agir», também conhecido por «interesse processual» ou «necessidade de tutela jurídica», é o interesse em recorrer ao processo. Traduz-se na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial, de usar o processo, de instaurar e fazer prosseguir a acção. A decisão de maioria peca apenas o interesse processual do assistente quando tenha manifestado aquela “pretensão” em termos da medida de pena, sem ter justificado o interesse objectivo no exercício do poder jurídico-penal conferido ao assistente.

    Efectivamente, a legitimidade para o recurso por parte do assistente assenta na medida em que ele aí assume a qualidade de sujeito processual principal, na circunstância de ter ficado vencido, afectado com a decisão, por não se haver proferido a decisão mais favorável (mais justa) aos interesses a que a lei quis proteger com a incriminação e de que ele também é titular ou portador, não interessando que o assistente haja deduzido acusação ou que apenas haja aderido à acusação antes formulada pelo Ministério Público, pois que, em qualquer caso, o assistente assume no processo uma determinada posição em relação à tutela do bem jurídico protegido.

    A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa. Na verdade, quando o assistente recorre de uma decisão, por não concordar com a pena encontrada, tem também em vista tais fins, mormente a protecção dos bens jurídicos, por, no seu entender, a punição concreta não lograr alcançar essas finalidades.

    Desde que o assistente se tenha por afectado pela decisão penal por ela não corresponder, segundo o seu juízo de valor, à justiça do caso concreto, ganhando assim legitimidade, então também não pode colocar-se em dúvida o seu “interesse em agir”, o seu “interesse processual”, a sua necessidade do processo ou do recurso, pois que a sua pretensão só pode ser resolvida através do processo penal, no caso através do recurso.

    A finalidade pretendida pelo assistente no recurso da decisão da medida da pena seria sempre realizada pelos órgãos públicos judiciários, do Ministério Públicos ou Tribunais, nunca podendo concluir que (caso assim admita nesta matéria) “seria voltar ao tempo da justiça privada” (penúltimo parágrafo da fl. 11 do acórdão).

    Em conclusão: o assistente pode recorrer sempre, mesmo que o MP o não tenha feito, para pedir, nomeadamente, a re­apreciação da espécie de pena e da medida de pena por as considerar como traduzindo valoração menos gravosa do que aquela que a justiça do caso impunha.

    Choi Mou Pan

    2015.4.15


        

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